Passa por cima
Leo é cadeirante acostumado aos obstáculos cotidianos. Buracos, postes, orelhões, árvores, gente sem noção e degraus, muitos degraus que o obrigam a vagar procurando uma decida de garagem ou uma boa alma.
Foi com grande alegria que assistiu a construção, em frente ao seu prédio, de uma rampa de acesso ligando a calçada até o outro lado da rua, atravessando a praça e terminando em frente à entrada do supermercado. Asfaltada, sinalizada com lindas faixas amarelas, independente.
No dia da inauguração Leo desceu ansioso para estrear a pista e deu de cara com um Palio estacionado bem em cima da faixa. Deixou um bilhete simpático no limpador de para-brisa e resignou-se em dar a volta na praça. À noite tranquilizou-se ao ver a pista desimpedida. Pela manhã lá estava o carro no mesmo lugar. Deixou outro bilhete agora menos simpático e mais incisivo. Na manhã seguinte, o carro na faixa e o bilhete de Leo amassado no chão. Resolveu esperar para conversar com o vizinho. Quando o homem chegou Leo o interpelou.
- Senhor, com licença, boa noite.
- Não dou esmola.
- Desculpe-me, houve um mal entendido. Estou aqui o esperando apenas para lembrá-lo da proibição de estacionar neste local, pois o senhor está tirando o meu, e de vários outros cidadãos, o direito de ir e vir.
- Passa por cima, aleijadinho!
E saiu rindo e balançado a chave do carro. Leo não dormiu direito, passou a noite com a frase “passa por cima” retumbando nas têmporas. Pela manhã pegou o jornal e observou as duas linhas amarelas paralelas emoldurando o nome do jornal. Possuído, encomendou um galão de tinta óleo amarela, bandeja, rolo e haste. Esperou o carro estacionar e a madrugada para proteger sua empreitada. Com muita dificuldade pintou sobre o capô do carro a continuação da faixa amarela. Repetiu a operação na trazeira do veículo. Exausto, coberto de suor e tinta, voltou para o apartamento direto para a janela onde ficou aguardando o show de desespero do proprietário do carro.
A história correu o bairro e nunca mais ninguém estacionou sobre a faixa.
Comentários
Fora isso esse conto tem um caráter bem didático, se os personagens fossem mais lúdicos, o chamaria de fábula.