O balde cheio
Chovia, mas chovia muito na cidade maravilhosa. Mas era tanta torneira despencando dos beirais que não mais se via a via expressa, somente bueiros ferventes. O rio Carioca enlaçava-se às pernas hesitantes das almas encharcadas. Os inevitáveis carros dos bombeiros gritavam vermelhos ao fazerem marolas sobre as calçadas escondidas. As árvores dançavam bêbadas a música do caos, lançando folhas ao vento como filhos à própria sorte.
Lá em cima, baldes sôfregos corriam de mão em mão, urgentes em salvar o barraco afogado. O céu rugia nas encostas lançando fleches assustadores no paredão de pedra, tal qual correspondente de guerra tirando fotos a cada rajada de raios torturantes. A geladeira pulou para cima da mesa, o fogão, já sem ar, soltava uma fumacinha ardida de gás. Balde de mão em mão, suor, balde, lama. O coração pulava apertado no peito enrugado. Balde, balde, barro, lama, suor e mais lama do céu crescendo de baixo para cima. Balde de mão em mão, barro, lama, mão e mais barro já em sopa de coisa boiando. O suor foi cedendo espaço para a enxurrada que lava, suja, lava e leva a merda das valas irmanada com o açúcar, o feijão, as roupas, e as panelas despencadas do armarinho.
E, por fim, dentro de uma verga de lama, o balde despenca, derrotado, em direção ao breu do barranco mole. A terra treme, não de frio, mas de medo e vergonha diante do enorme tobogã de miséria deslizante em direção à zona sul da cidade. A boca rachada da floresta cospe a sopa de nada de quem perdeu tudo. O caldo vai descansar fétido sobre as brilhantes telhas da orla julgando, inocente, atingir os comedores da raiz da montanha por covardes séculos mudos.
Comentários
valente | Email | 26-04-2007 09:32:41
YvaninhoKunha | Email | Homepage | 04-01-2007 20:56:30