Nada ao acaso
Apressado pela
Rua das Laranjeiras devora um joelho de padaria. Pensa ouvir um arfar nas
costas. Olha para trás e nada vê. Continua ouvindo e andando e vez em quando
olha para trás. Nada. Para no sinal da Rua Pinheiro Machado e sente o contato
úmido na canela. Um vira-lata baba seu tênis. Vaza! Grita enojado. O cão para,
senta e encara com a língua pendurada. Saco. Vai pra casa, cara, você está me
confundindo com outro humano. Olha só: vou atravessar a rua agora. Não vem não,
fica aí, é perigoso; você entendeu? O cão atravessa junto. Chegam ao
laboratório para pegar resultado de exame. Entra ele, o cão é barrado pelo
segurança: xô sarna! Melhor assim. Pega o resultado, rasga o envelope. Uma
linha impressa e dois segundos são suficientes para minar seu futuro. Faltam
pernas, anoitece, senta gelado na calçada. Pensa nas coisas a fazer, no que
jamais faria e, principalmente, no que jamais deveria ter feito. Deita os
braços nos joelhos. Chora para o chão. Levanta o rosto para o céu puxando os
cabelos. Abre a boca para gritar e para. Você ainda está aqui? O vira-lata arfa
e balança o rabo. Vem cá. Implora. O cão deita focinho na perna dele mantendo
os olhos fixos no rosto molhado do homem. Valeu, cara, eu estou precisando
desse apoio. Você não sabe, mas eu sou um merda. Pra você tudo bem, né? Você é
um vira-lata muito legal. Eu gostaria de conhecer gente tão legal quanto você.
Sabia que eu sempre quis ter um cachorro? Sei. Sei que você entende. Talvez
você possa me ajudar. A partir de agora estou muito só. No começo daremos
longos passeios e brincaremos na praia. Você gosta de praia? Eu também. Vou
precisar de todo o seu amor, dias muito difíceis virão e vai ser só nós dois e
quando a dor aumentar contarei com teu abraço babado, meu fiel amigo, e irei...
Alguém passa
diante deles com sacola de supermercado. O cão levanta e acompanha a sacola
arfando sem olhar para trás.
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Wilma