Sobre a solidão das rosas



Marlene mora sozinha e trabalha na biblioteca desde sempre. Acorda tarde porque dorme e labuta até o fim da noite. E também porque não tem um bichinho para alimentar ou para brincar ou para ficar olhando. Todo sábado vai à feira comprar víveres e rosas vermelhas que ninguém mais, além dela mesma, verá sobre a mesa da sala. Todas as noites senta-se à mesa admirando as pétalas ao som de jazz regado à vinho tinto seco. Escreve num caderno florido suas impressões sobre o mundo que nunca serão lidas. Compra bens que jamais serão aproveitados por ela ou por herdeiro algum. Limpa a casa somente para que o vento suje.
No trabalho conheceu Anselmo, frequentador diário da biblioteca. Conversam pouco, só sobre os livros a serem consultados. Com o tempo Marlene foi desenvolvendo um carinho especial por aquele homem sério, contido e elegante que sempre trazia uma rosa vermelha na lapela.
Num dia de ousadia, comentou que amava rosas vermelhas e que sempre as tinha em casa. A partir daquele dia Anselmo passou a dar-lhe a flor da lapela diariamente.
Ela apaixonou-se perdidamente. Passou a arrumar-se com esmero. Batom, esmalte e decote discreto. Perfume leve. Tudo harmonioso com o coque elegante. Desde então, abominava os fins-de-semana. Não mais comprava as rosas aos sábados, arrumava sobre a mesa as rosas murchas presenteadas pelo amado. Escrevia poemas melosos e acordava segunda-feira ansiosa pelo encontro.
Um dia Anselmo não apareceu. No outro dia também não. Nem na semana, nem no mês, nem no ano seguinte. Marlene definhava a olhos vistos em seu silêncio inodoro. Enfim criou coragem. Pegou o cartão da biblioteca de Anselmo e ligou para o telefone. Ninguém com esse nome. Endereço inexistente.
No sábado Marlene comprou rosas vermelhas, vestiu-se de negro e foi para o cemitério São João Batista. Depositou as rosas no túmulo mais bonito que encontrou, abraçou-se à lápide e chorou copiosamente até o sol se por.

Comentários

Ivo de Souza disse…
Realmente este conto está muito bom. Você dá um excelente tratamento artístico. Sem ser artificial ou usar um sentimentalismo vulgar, você constrói ótimas imagens e sensações que nos fazem vislumbrar o que está acontecendo, mas que, por outro lado, nos deixam um sutil ar de incerteza, de múltiplas significações. Parabéns!

Ivo de Souza
FaBiaNa GuaRaNHo disse…
Catarina, Raposo pediu pra avisar que está muito honrado com sua declaração, agora, quanto a Matilda, o negócio é rezar pra ela não descobrir.
Ele mandou um beijo.
E só assim descobri este seu cantinho maravilhoso.
bjão e volet sempre
Anônimo disse…
UM DIA ALGUÉM ME DISSE QUE VC OBSERVA AS PESSOA E ESCREVE ALGO NÃO DIRECIONADO À ELAS, MAS SOBRE ELA....

Postagens mais visitadas deste blog

Porque o inferno se perdeu

Uma luva vermelha em Porto Alegre

Todo o meu pedaço