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Mostrando postagens de junho, 2008

Notícias do limbo

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Querido amor, Trago notícias do limbo. Aqui não faz sol e nem chuva, frio ou calor. Os dias são iguais às noites assim como estas letras simétricas. Peço, desde já, desculpas pela forma sonolenta do relato, mas outra forma não haveria como chegar aos teus olhos, quiçá ao coração. Gostaria imensamente que recebesse esta cheia de descobertas e felizes encontros, flores na estrada e temperaturas inusitadas. Quero que saiba que jamais te escreveria à toa se, realmente, não estivesse esta pobre alma perdida entre um parágrafo e outro. Ciente e arrependida de meus crimes cumpro abnegada minha pena. Conto os dias com riscos na parede e, ao mirar o mural de retalhos, desespero-me com o tempo esquartejado e jamais recuperável. Daqui do limbo contemplo o infinito do que não fiz, do que não comi e, principalmente, do que não fui. Faz parte da pena a turbulência dos próprios pensamentos e o silêncio do futuro. Quanto tempo mais ficarei por aqui? Com certeza o meu nobre anjo está a perguntar. É nec

A casa do Seu Pedreira

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Seu Pedreira tinha como domicílio oficial a Praça São Salvador – oficial sim por que há relatos de que recebia cartas das mãos do próprio carteiro. Catava coisas na rua e papelão, principal matéria prima para confeccionar sua residência móvel, instalável em qualquer dos trezentos metros quadrados de seus domínios. Durante o inverno, no coreto; no verão, ao lado do chafariz. Mas era na primavera e no outono que sua criatividade aflorava: armava o barraco em qualquer recanto da praça, do parquinho das crianças ao canteiro dos cachorros. No entanto, nem tudo era flores para Seu Pedreira. Vez por outra agentes da limpeza urbana recolhiam seus pertences. O homem virava bicho. Xingava Deus e o Diabo e quem fosse portador. Era pedreira para acalmar o velho. Daí o nome. Diante dos inúmeros percalços, Seu Pedreira acordou um dia inspirado. Olhando fixo para as árvores viu a solução de seus problemas. Na calada da noite, aproveitando-se das folhagens densas, iniciou o grande projeto da casa na

A trocadora de sonhos

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Crônica publicada em 2007 na Revista de Domingo do Jornal do Brasil Dalva trabalhava naquela linha há vinte sacolejados anos. Viu o trajeto ser alterado em ruas que viraram mão outras que viraram pé. Atuou com muitos motoristas, alguns mal humorados, muitos cavalheiros, incontestáveis kamikazis do trânsito. Presenciou atropelamentos, quedas de passageiros em freadas, assaltos, trocas de tinta com táxi, moto, caminhão e, principalmente, outros ônibus. Mas, verdade seja dita, foi testemunha de aniversários, pedidos de casamento, raspadinhas premiadas, trocas de presentes, beijos, amassos e sarros. Por gosto, tinha o hábito de, depois de adquirir a intimidade do terceiro bom dia, perguntar ao passageiro como a ilustre pessoa estava, como tinha sido o seu dia, se tinha dormido bem...Ali na roleta, começou a atender uma clientela assídua, ansiosa por contar seus causos, conquistas e mazelas. Ouvia a todos, só interrompendo rapidamente para concordar, confortar, dar uma palavra de força. Qua

Emergência

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- Boa tarde, doutor. Estou morrendo... - O que a senhora sente? - Dor no corpo, febre, piriri, enjôo, ardência na gengiva quando bebo chope mal tirado e coceira no dedão do pé esquerdo...É grave? Cutuca daqui, escuta dali, luz na garganta, nos olhos, nos ouvidos, bolina barriga, sovaco, pélvis, pescoço e nuca. Sentença imediata: - É virose. Vitamina C, antiinflamatório por sete dias, antitérmico quando tiver febre e repou... - Virose? Mas que vírus? Ebola? Gripe espanhola? Herpes? - Virose simples, passageira. - E a coceira no dedão? - Frieira. Vou passar um talco e... - E a gengiva? - Não tem nada aparente, mas a senhora deve procurar um dentista regularm... - Mas assim? Virose e pronto? Sem tomografia computadorizada? Nem um modesto kit exame de sangue e urina? Fezes! Há muitos anos não faço um exame de fezes. Nunca gostei de sair por aí com aquele potinho cheio. Mas, pela saúde, faço qualquer negócio. O doutor não acha que pode ser uma solitária devorando as minhas entranhas? Douto

Mulheres, borboletas e moscas

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Acorda, corre para o calendário e pensa: Caramba, o dia dos namorados caiu no auge da TPM da Margarida. Estou ferrado. Não vai ser fácil escolher o presente. Toma banho caprichado, faz a barba e veste a camisa que Margarida deu no natal. Sem perfume para não irritar. Já no shopping, percorre as vitrines recheadas de roupas e bijuterias. Não cometeria o mesmo erro do ano passado. Não reparara que ela não usa brincos, anéis ou pulseiras e dera um conjunto completo; até hoje pendurados no gancho da rede do quarto a título de decoração. Com roupas ela não se empolga e livros é tão difícil saber o que ela não leu ou o que jamais lerá. Embora não se enfeite, Margarida decora a casa como um ninho de passarinho: vários pequenos objetos compondo um quadro caótico. Coisas coloridas achadas na rua, pequenos presentes e muita bugiganga. Sai do shopping frustrado e vai bater na feirinha de artesanato de Ipanema. Acha um troço lindo, a cara dela. Compra e passa numa floricultura. Rosas br

A urna e o gelo

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Acordou cedo, tomou banho e fez a barba. Procurou o título, mas lembrou ser a identidade desbeiçada o suficiente. Vestiu a camisa vermelha, achando-a por si só explicativa, e saiu fingindo indiferença de quem vai cumprir velha obrigação. Não tinha fila e os mesários estavam ali só para ele. Diante da urna, um frio covarde na espinha fez com que demorasse seculares segundos para tirar a cola do bolso. Digitou o número e teclou confirma. Tiririririm!! Acabou. Soltou um pumzinho aliviado e respirou orgulhoso. Tá feito. Sentia o corpo leve, mas sabia que teria de dar satisfações. Foi pensando no caminho pro trabalho: poderia mentir ou alegar que revelar voto é sacrilégio, ou melhor, dizer que esqueceu. Não vai colar. Começou a ficar nervoso só de pensar. Chegando na birosca da Dona Otília, viu a patroa com a cara azeda de costume. Dizem que sofre dos bofes. Ninguém para atender. Colocou o jaleco amarelo e antes de conseguir chegar no balcão, a peçonhenta atacou: - Votou em quem? Fingiu que

Calor, né?

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- Moço, aperte o número 23, por favor! Muito grato. - 12 - 5 - %#@!! - Senhor, qual o andar mesmo? - É surdo? 28. - Calor, né? - Vai chover. - Ôô... - Ainda bem que a viagem é rápida. TREC - Vocês ouviram um TREC? - Devem ser os cabos... - Ou os freios... - Freios? - É assim mesmo. TREC-TREC. Luz apaga. Pára tudo. - Ai meu-deus-do-céu!! - Calma, não foi nada... - Como “nada”? Não enxergo nada! - Vão ligar os geradores... - Daqui a pouco... - É só ter paciência... - É... - Aperta o botão vermelho! - Botão vermelho? - Onde? - Ôi? - Virgem Maria! Valei-me meu Jesus Cristinho! Não deixe que eu morra nesta lata de sardinha!! - Ninguém vai morrer aqui. Vamos sentar e esperar. (...). - Tô com o ar faltando...Uma angústia no peito... - Mas só se passou um minuto... - Não interessa, tô preso, sem ar. - Ih...O cara vai dar defeito... - Ninguém merece... - Relaxa, cara... - Deixa de merda... - Ai, minhas mãos estão dormentes, suando frio, a vista escurecendo...Ui... - Bate palmas... - Abre e fech

Segredo

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- Mas que merda! Tira esse troço preto fedido daqui! - Assim estraga a amizade. Qual é o seu problema com a minha mochila? Tu é racista, nêgo? - Racista é o cacete! Não gosto é de fedentina. O que tem aí dentro? A cabeça da tua sogra? - Antes fosse, colega, antes fosse...Vou te mostrar. - Nem pagando! Vira essa trolha para lá! - Não tem risco. É de comer. - Você acha mesmo que eu como merda? - Não. É queijo. - Queijo? Podre, é certo. - É francês. - Francês não toma banho e passa o queijo no sovaco enquanto prepara. Estou até vendo a cena...Credo... - O gosto é bom. - Deixa eu ver esse negócio. - Vou cortar um pedacinho para você experimentar... - Feio, ein?...Está mofado, seu idiota, joga essa porra fora! - Só um pedacinho... - Parece maluco. Tá querendo me envenenar? - Pára com isso, cara, você precisa quebrar esse paradigma, experimentar coisas novas... - Vou dizer já o que eu vou quebrar... - Ummm...Está uma delícia. Nossa, pena que você não consegue... - Se eu comer esse bolor você

Sábado de gato gordo

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Entrou no pequeno armazém como fazia nos últimos quarenta anos, mas baixou a grade em seguida. Determinado, correu até a pia e começou a preparar a coisa. Dois litros de óleo de soja, banha passada à vontade, um litro de creolina, uma concha de sabão em pó, Cinco ovos podres cultivados ao sol na véspera, duas pitadas de ódio e cem gramas de vingança. Misturou tudo até ferver. Cozinhou lentamente em mágoa branda. Para finalizar, preparou a calda grossa de impotência derretida em doses generosas de tristeza. Esperou a tarde cair. Deste sábado não passaria. Era certo. Sábados...Sábados...Lembrou das crianças fazendo fila para comprar pirulito de açúcar queimado, bala de tamarindo e maria-mole, branca ou morena. As senhoras, vindas da rua da frente e da rua de trás, compravam manteiga a granel, arroz do tonel, pomada Minâncora, Leite de Rosas e Polvilho Anticéptico Granado. Dava gosto ver aquele mulherio borbulhando, se misturando com o tilintar das garrafas de leite. À tarde, chegavam os

Manga com leite

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Entrou no boteco, bateu no balcão e gritou: - Bota aí um copo de leite batido com manga e chumbinho que hoje eu quero morrer! - Leite com manga? Não tem não senhor. - Ah! Então traz cachaça de cabeça e um chope. Na pressão. Demoro a morrer, mas morro! Virou o pedido e devorou uma empada de frango para empapuçar logo. Quem sabe conseguiria acabar com o sofrimento entalado? Fumou três cigarros emendados um no outro para não apagar. Tossiu tal qual cachorro sarnento, cuspiu no chão e latiu: - Hoje eu morro! Sai mais uma manga com leite na pressão! - ? - O mesmo! O mesmo! Tem que explicar tudo aqui... Mais três cigarros e pensou na Lurdinha rebolando com a safadeza dos dentes arreganhados no pagode. Aquelas toras de pernas suadas esbarrando em tudo quanto é tipo de malandro. Malvada. - Hoje eu morro e ela vai chorar rosas vermelhas de sangue no meu caixão! Mais um queijo com molho de manga! Abraçou os olhos com as mãos para não ver a lembrança de Lurdinha entrando no banheiro com o playboy