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Mostrando postagens de 2014

Coragem, dezembro

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          Caixinhas, comprinhas, lembrancinhas, íntimos esquecimentos; vinhas e rinhas de Natal, não há perdão. Impossível traduzir todo o seu amor em objetos horrorosos.          Forcas bipolares travestidas de guirlandas seduzem inocentes décimos terceiros salários. Papai Noel se multiplica em varandas envidraçadas. Bizarros arranjos penduram o velho barbudo vermelho entre luzes e pedidos de revanche, a memória escorre nos umbrais.  Ambulâncias urgem enquanto shopping centers lotados de calos e dívidas futuras piscam sedutores. Pisca-piscas incendiários, presépios decorados com alienígenas fluorescentes em miniatura: nada a declarar por suas santidades. O povo quer mais. Dingobel, dingobel, acabou o papel.  Hoje vai bater 40 graus. Vai cair o maior toró. Não faz mal, não faz mal, limpa com jornal. Sensação térmica de 46 graus, e olha que não chegou nem o verão.  Esqueceram o vestilador ligado, incêndio num sobrado no centro do Rio. “Rio, cidade que me seduz, de dia falta água, d

BELADONA

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                    Beladona nasceu com um problema que carregou como uma cruz por toda a vida. Veio ao mundo proprietária inquestionável de uma beleza intoxicante; daí o nome.          Foi a bebê mais fofa da maternidade: sem ruga, amarelão, hematoma ou inchaço. Verdadeira top model do berçário. No parquinho sua companhia era disputada pelas mamães, papais, babás, bebês e até pelos cachorros. Voltava para casa toda lambida e as bochechas amassadas. Passou a infância sendo assediada, bolinada e elogiada como uma boneca de vitrine. Lutou até a adolescência por uma identidade própria. Quis ser professora, veterinária, bombeira, policial, atleta e cientista. Todo mundo achava graça como ela era linda e brincalhona. Foi capa de revista infantil, modelo e, para ser atriz, bastou estar de corpo presente no estúdio ganhando muito dinheiro. A família, orgulhosa, cobria a garota de mimos.  Eram tantos compromissos que Beladona desistiu de seus sonhos.          Com o tempo se acos

Dívida histórica

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Quem olhava para o meu roçado esturricado, as galinhas carecas e Vaidosa, a vaca leiteira, com as costelas assanhadas e as tetas secas, pensava logo que eu não cuidava da posse. Mas Deus é testemunha que não havia galo que, ao acordar, não me encontrasse lutando no roçado. Por mais que cavasse não brotava água nem para amolecer a terra. Os meninos sem condução ou disposição na barriga para ir até a escola por um mingau ralo, iam ficando por ali mesmo catando mandacaru e xique-xique. A mulher toda manhã vagava duas léguas com o mais velho para catar água na poça sobrada do açude. A vida cobrava mais do que dava e nem o Sol, que nunca faltou, se compadecia do nosso miserê. Um dia uns homens de sapatos pretos em carro de roda larga chegaram medindo telhado, colocando calha e cano até uma caixona enfiada no chão. Tampada que nem uma chaleira guardava a escuridão. Aí veio os meses da chuva e a caixa encheu. Os homens trouxeram médicos de fala esquisita, mas de boa mão. Um ônibu

Sou nordestina, de pai e mãe.

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                   Sou nordestina, de pai e mãe. Não me interessa minha origem portuguesa, espanhola, holandesa, indígena ou africana. Sou brasileira e nordestina e isto me basta. Nasci em Maceió, Alagoas e, pasmem, não sou idiota. Amo e conheço minha terra como quem toma um caldo-de-cana ruim pela manhã sabendo que à noite todo o potencial de meu povo pode surpreender.            Cresci em uma família de trabalhadores e pensadores que se preocupam mais com a dignidade, alimentação e educação dos seus do que com a rotação da Terra e a opinião alheia.          Divertidas, se não fossem trágicas, as reações xenófobas nas redes sócias pregando o extermínio do povo nordestino, são de uma virulência tão inócua que remetem à “Revolta da Vacina” no início do século passado ou à penca racista imputada a Monteiro Lobato. Aos ataques infantis seria covardia qualquer revide. De muitos legítimos defeitos de meu povo, um que ele não tem vocação é para a covardia.          Não precisamos

Ninguém aprende a ser atleta em meia hora de esteira, muito menos a respeitá-lo.

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Não vou falar da Copa. Ninguém aguenta mais; nem eu. O assunto de hoje é muito mais profundo. Quero falar do atleta, esse ser que de tão simples chega a ser complexo. Ao contrário da Copa, FIFA, CBF, Governo, que podem ser julgados politicamente, o atleta não pode ser confundido com elementos exteriores à sua essência. Ser atleta requer práticas e conhecimentos físicos e mentais desconhecidos da maioria ensandecida opinante nas redes sociais e até de alguns respeitáveis jornalistas que vêm divertindo a população com suas crônicas “esclarecedoras” quanto à incompetência dos jogadores.                 Li recentemente um texto apócrifo, logo covarde, que execrava os jogadores de futebol pela imerecida rápida ascensão econômica e social sem estudar, sem esforço. O texto alegava que a derrota da seleção brasileira para a alemã era merecida por serem os jogadores brasileiros uma cambada de vagabundos, ignorantes e malandros. Acho uma hipocrisia acreditar que toda sabedoria vem do estud

A PRAÇA É DE NINGUÉM

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As praças foram criadas para que os humanos pudessem interagir de forma centralizada. Fosse para se divertir, competir, se exibir ou compartilhar a comida. As praças participam da evolução da humanidade. Nascem, têm seu apogeu, tragédia e abandono junto com suas civilizações. Algumas adormecem como Pompéia e Machu Picchu. Ao contrário das civilizações as praças, enquanto espaço aberto,  nunca morrem, apenas adormecem. Aguardam o momento propício ao renascimento.  As praças eternizam-se na memória de cada frequentador e momentos, como clichês, não morrem. O leitor neste momento deve lembrar da praça da infância onde brincou de escorrega, jogou bola de gude, deu o primeiro beijo, conheceu a pessoa amada. Todo mundo tem uma lembrança de uma praça a preservar. Eu também tenho uma praça. Moro na bucólica Praça São Salvador, fincada na zona sul do Rio de Janeiro, Brasil. Sem trânsito intenso, arborizada, ruas de paralelepípedo, parquinho, chafariz e coreto. A dez minutos do Centro, d

UM POUCO SOBRE A FÉ

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Sou uma mulher de família, sensível e agnóstica por definição. Falo assim, aos poucos, para não assustar o leitor na primeira linha. Na verdade sou uma mulher sem religião, coisa que minha mãe nunca acreditou e sempre me viu como uma verdadeira cristã. Mas o olhar das mães sobre os filhos é tão insuspeito quanto inconfiável. Ser agnóstica para mim não foi uma escolha, foi uma consequência natural de um raciocínio lógico. Nunca levantei a bandeira do ateísmo, porque não nego a existência de Deus, eu ignoro sua existência, não faz diferença na minha vida. Simples assim. Esta posição tem uma consequência: um profundo respeito pelo ser humano, os animais e este planeta. Acredito que só tenho esta vida de mamífera para viver, meus atos e palavras terão efeitos imediatos, sem milhagens celestes ou infernais.   Exatamente por isso admiro profundamente quem tem fé em Deus, invejo até, quem cultiva tão singela virtude. Quem a tem vence obstáculo mais rápido, resolve quebra-cabeças sem co

Não aguento mais gente que não aguenta mais

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Antes das redes sociais, quando não queríamos mais ouvir comentários sobre uma determinada notícia, bastava desligar o rádio ou fechar o jornal ou se afastar disfarçadamente do chato do momento.  Hoje acordamos com o sinal de alarme de mensagem nova no nosso celular de uma operadora invasora informando que a seleção da Croácia pousou neste exato momento no aeroporto brasileiro. Melhor quando o celular toca na chuva, paramos numa marquise escura e suspeita para ouvir uma gravação que não podemos perder a incrível promoção de tablet dez vezes melhor e mais barato que o nosso. Como não se sentir pelado numa vitrine? Entramos no metrô e a tevê informa que a festa de casamento da socialite em São Paulo foi deslumbrante. No noticiário do elevador fico sabendo que pesquisa afirma que 1/3 das mulheres e ¼ dos homens preferem desabafar com os cães. Um cachorro orelhudo vestido com um agasalho bizarro ficou à deriva para adoção no Largo do Machado. Milhões de crianças e animais estão aban

UNHAS MARCANDO O COURO

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Não conseguia entender a teoria aplicada no PowerPoint durante a reunião no escritório. O café que ela servia rivalizava com o escurinho da sala e as piscadas das imagens. Na saída o Sr. Douglas tentou escambar um beijo bêbado de Viagra no elevador em troca de um Ray-Ban de hastes douradas de lentes espelhadas que recebera por ser o vendedor do ano de 1989. Na rua ele ofereceu carona com as calças duras e o hálito seco. Ela olhou para os ônibus lotados pensando na estrada Grajaú-Jacarepaguá e o quanto vem adiando aquela cirurgia de varizes. Sentou no Corsa Sedan do Sr. Douglas segurando a bolsa no colo com as unhas marcando o couro. Ele falando do tempo o tempo todo, ela ouvindo a música do lado de fora, a música que a cidade canta todos os dias na hora em que todo mundo quer ir para casa ao mesmo tempo. As janelas e os postes sendo levados pelo vento possante do Corsa do Sr. Douglas. Foi apagando aos poucos e quando acordou o Sr. Douglas já estava se limpando. Ela ficou com o Ray-

A espanhola que sobreviveu à gripe

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Decidiram não ter filhos para viver exclusivamente um para o outro. Os primeiros dez meses de casamento de Lisa e Beto foram de lua de mel, os próximos de puro fel. A divisória entre o céu e o inferno não passou nem pela alfândega, não precisou de passaporte, muito menos de visto ou carimbo consular. Um ding-dong na campainha foi o suficiente.  Lisa abriu a porta e lá estava a sogra de mala, gaiola de papagaio, cachimbo e cuia de chimarrão. Não, não era gaúcha, adquirira o simpático hábito com o falecido marido. Embora não largasse a cuia e a garrafa térmica era imigrante espanhola. Chegara num navio fétido com o irmão, o pai e a mãe. A mãe morreu no parto com o terceiro filho nos campos de tomate no interior de São Paulo, o pai e o irmão sucumbiram à gripe espanhola, daí passou a sofrer dos nervos. Casou com um italiano surdo que não se incomodava com o fato dela falar sozinha, reclamar e gritar o dia todo e à noite também; o que não impediu que fizessem três filhos. Com a viuvez

A nossa ditadura militar foi sólida, líquida ou gasosa?

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Venho acompanhando, meio sorumbática, essas “revelações” escabrosas durante o cinquentenário do golpe militar. Nasci em junho de 1963, logo o governo militar me acompanhou desde as fraldas como uma entidade onipresente regendo minha pátria durante vinte e um anos, matando, estuprando, torturando e destruindo carreiras.  Além de sanguinário, o governo militar conseguiu ser corrupto e incompetente, afundou o país na maior crise econômica e abandonou os pobres na ignorância e na miséria absoluta. No fim, não sabia mais o que fazer com essa merda toda que criou, com a inflação estratosférica, o povo querendo eleições diretas, uma confusão dos diabos. Saiu pela porta dos fundos. Ainda bem na foto, fazendo a “transição democrática”. Todo mundo com seus soldos, aposentadorias, conta em banco na Suíça, sem responder por seus crimes, uma beleza! Todo mundo anistiado. Anistia AMPLA, GERAL e IRRESTRITA. Coisa linda. Pluft! Foi pura mágica. Pagamos um preço muito alto pela democracia: a impunid

Lixo acumulado

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(Foto Arte Roa) Subiu no coreto da praça numa seca manhã, abriu os braços e anunciou: - O fim está próximo! Para você, para você e para você aí também que bebe inocentemente sua água de coco. Os dias estão contados para estas árvores centenárias e seus pombos cagadores. E não pense que esse cachorro de cara achatada e olhos esbugalhados terá salvação. Todos, todos morrerão quando o céu se abrir em fogo e soltar o hálito da besta nas nossas ventas! Foi juntando gente. Seu Milito da banca comentou com seus jornais: O Zé das Tintas pirou de vez. Muita cachaça ou chifre; só pode. - E quem duvidar há de boiar nas caixas de gordura do belzebu com a cabeça raspada com gilete enferrujada! - Sai daí maluco! Gritaram da arquibancada. - Quem ousa retrucar a palavra sagrada há de ser o primeiro a conhecer o breu eterno. Lá pela quarta fileira da plateia um passante estica o pescoço: - O que foi? É briga ou maluco? - Maluco. É o Zé das Tintas. Tem três meses que não consegue um r

Pequenas animalidades do cotidiano

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(Foto Sammy Angeli)          Calor do cão. Clássico no Maracanã lotado, recém-reformado, telão, cadeiras fofas, papel higiênico nos banheiros, luzes escalafobéticas, padrão FIFA mesmo.  O campo ali esfregando no nariz do torcedor a grama suada. Sensação de primeiro mundo.  Vira-lata orgulhoso.          O juiz apita o começo da apoteose. Uhú! Todo mundo levanta, faz marola, punheta bandeiras, canta hino e quica. Coisa de louco. Eis que chegam os personagens onipresentes nos clássicos: a valente polícia carioca. Formam um paredão bem na frente da arquibancada tomando toda a paisagem sagrada. A galera estica pescoço se balançando tal boneco do posto para ver o gramado. E a PM lá mantendo a formação de reticências emparedando o espetáculo.  Ninguém ousa reclamar.          Ocorre que Samuel, nascido no Rio Grande, criado pescando no rio Taquari, adolescente forjado nas peripécias de Minas Gerais, viajado por todos esses cafundós do Brasil, com mais de vinte anos de carioquice, ach

Chinelo azul

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                   Meio enterrou-me na areia Solar. Recebi a camiseta e a bermuda formando sobre mim um montinho abafado. Pelas tiras vi o homem entrando na água com um mergulho borboleta. Adorava vê-lo entrar no mar e sair nadando em caça deslizante ao jacaré. Depois me entediava e ficava olhando o povo passando de um lado para o outro e as crianças fazendo “castelos de areia” que mais pareciam crateras lunares rodeando dunas de estrume. No cume mais alto um canudo plástico enfiado num envelope de picolé faziam o papel de bandeira da fortaleza. Lá vem um turista ensandecido pelo calor ou pela caipirinha ou por ambos e cai no fosso do castelo. Invasão! Invasão! Gritam as crianças embolando na areia enchendo e as amídalas de areia. Depois corre todo mundo para a água para dar barrigada e sair gargalhando com zumbido nos ouvidos. Penso aqui com as minhas borrachas: essa deve ser a primeira alucinação humana de tantas que virão em suas pandêmicas vidas.             Gosto também do