Pequenas animalidades do cotidiano
(Foto Sammy Angeli)
Calor
do cão. Clássico no Maracanã lotado, recém-reformado, telão, cadeiras fofas,
papel higiênico nos banheiros, luzes escalafobéticas, padrão FIFA mesmo. O campo ali esfregando no nariz do torcedor a
grama suada. Sensação de primeiro mundo.
Vira-lata orgulhoso.
O
juiz apita o começo da apoteose. Uhú! Todo mundo levanta, faz marola, punheta
bandeiras, canta hino e quica. Coisa de louco. Eis que chegam os personagens
onipresentes nos clássicos: a valente polícia carioca. Formam um paredão bem na
frente da arquibancada tomando toda a paisagem sagrada. A galera estica pescoço
se balançando tal boneco do posto para ver o gramado. E a PM lá mantendo a
formação de reticências emparedando o espetáculo. Ninguém ousa reclamar.
Ocorre
que Samuel, nascido no Rio Grande, criado pescando no rio Taquari, adolescente
forjado nas peripécias de Minas Gerais, viajado por todos esses cafundós do
Brasil, com mais de vinte anos de carioquice, achou por bem dialogar com a
autoridade.
-
Aí, Comandante, por favor, dá pra dá uma licencinha aí pra gente ver o campo?
Não prestou
não.
O “Comandante”
veio caminhando em câmera lenta na direção de Samuel que continuava feliz da
vida curtindo o momento acompanhado do filho. Quando percebeu o “Comandante” já
estava respirando na sua cara. Antes que Samuel esboçasse qualquer simpatia
peculiar à sua natureza recebeu logo os cumprimentos tão marcantes nessa classe
de trabalhadores:
- Olha pra mim
Seu filho-da-puta! Tá querendo tirar onda com a minha cara, Seu Merda? Vou te
encher de porrada, viadinho escroto. Quer me tirar daqui? Vem me tirar daqui!
Tenta, vai, tenta que eu quero ver. Vai apanhar tanto que vai chorar pelo rabo.
Que foi? Que foi? Perdeu a coragem? Desistiu de morrer hoje? Bostinhas como
você eu esmago como aquecimento depois do café da manhã. Entendeu ou vou ter
que desenhar nos teus cornos?
O sangue subiu
até as sobrancelhas de Samuel. O filho, carioca acostumado a levar dura da
polícia nas noites da Lapa, colocou lentamente a mão espalmada sobre o peito do
pai. Samuel sentiu os cinco dedos do filho segurando o seu coração. Olhou
melhor a figura suada fincada na paisagem. Mão na arma, uniforme gasto
apertando uma barriga fenomenal, botas opacas, olhar vazio, boca mole, alma
dura. Sabe-se lá que filme ruim esse cara passou na vida. Sorriu por dentro com
o pensamento. Sentiu a mão do filho o arrastando e falou com a sensação de
ouvir um ventríloquo:
- Sim, Senhor.
Partiram para
o outro lado do estádio. Com o fel ainda
diluindo nas veias Samuel comentou com o filho em tom casual:
- Cara
estressado, né?
- Ôô...
Comentários
Conto lúcido e visceral, como a própria autora.