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Mostrando postagens de 2008

O sofá do Barreto

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Barreto ganhou um sofá usado do hotel onde trabalha: cinco lugares, estofamento de couro preto curtido e manchado. Uma belezura. Chamou o cunhado e o vizinho do caminhão, acertou umas cervejas para depois do carreto e partiram os três para pegar o presente do patrão. Aos “ais” carregaram o sofá da recepção do hotel até o caminhão. Mas sabiam da odisséia que estava por vir. Chegando ao conjunto habitacional, daqueles com jeitão de pombal, Barreto não precisou estudar engenharia para perceber que o trambolho não caberia no elevador. Passou no bar e convocou Zé das Couves e Pirulito para a empreitada via escada. E quem disse que o sofá dava curva? Só se fosse dobrável, o que não era o caso. Agora era uma questão de honra. A sala limpa, os amigos zoando, a criançada e a patroa na janela esperando o gigante. Foi juntando gente. Apareceu uma corda e amarraram o monstro para ser içado até a janela do 3º andar. Em baixo, Zé das Couves e Pirulito administravam a corda-guia dentro da capaci

A deusa do amendoim

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Não tinha dó. Vinha de shortinho e top prá lá e prá cá. Os marmanjos coçavam as carecas numa pausa instantânea para que ela passasse toda sua opulência juvenil por entre as vítimas. Oferecia amendoim e, naquela mesa, sempre vendia no mínimo três. Ouvia todo tipo de piadinha e convites. Mas dar, que é bom, só um sorriso tímido e o troco. A maioria dos boêmios se conformava com o agradecimento da pequena, menos Luisinho, o contador. Não só de números como também de histórias improváveis. Passou a flertar com a menina que, apertando os olhos, poderia ser a sua neta. O contador não pensava em outra coisa além dos botões em flor por baixo do top. Deu para persegui-la de carro, oferecer carona e o número do telefone; sempre recusado. Meses de labuta se passaram sem que a garota cedesse nem um olhar mais tenro. Desesperado, ofereceu dinheiro, casa, comida e o que mais a deusa desejasse. Até que, enfim, acendeu uma luz perguntando se ele cuidaria de seus irmãos e da mamãe também. Luisinho r

Hora do arrocho

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- Ai! - Desculpa aí. - Não está vendo que não dá para passar... - Não quero passar. Só quero colocar o meu outro pé no chão. - Deu? - Brigada. - Ô comandante, liga o ar aí! - Está quebrado. - Abram as janelas se não eu tiro a roupa. Calor do cão! - Mas está chovendo. - Então abre o guarda-chuva. - Abre! Abre! Abre! - Vai descer! - O senhor trouxe um bote? - Não, mas não vou ficar nesse imprensado. Prefiro ser engolido pelo rio carioca. - Espera a água baixar um pouco, velho. - O trânsito está todo parado. Vou nadando e chego antes de vocês. - Mãe, quero fazer xixi. - Segura, moleque, que já está chegando. - Mãe, chegando onde se a gente está parado aqui há um tempão? - Cala a boca e não enche. - Abre a porta agora! Vou sair! - O senhor é quem sabe... - Nossa... está puxando muito... - Volta! Volta! Volta! - É, vou esperar mais um pouquinho. - Tudo bem aí, filho? - Agora já estou aliviado. - Fazer o que, né? - Vamos levar um sambinha? - Samba! Samba! Samba! - “Assassinaram o camarão!” -

Interagindo na área de risco

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- Mãe, estou morrendo de fome... - Deixa que eu faço um macarrão prá você, filho. - Então acende o fósforo. - Eu não. Vai explodir tudo. - Claro que não. Não está vendo que o gás está fechado. - Vazando. Sinto o cheiro. - Já botei sabão na borboleta do fogão e não borbulhou. - Continuo sentindo cheiro de gás. - Fui eu, e daí? - Olha lá, heim... - Pronto, abri o gás. - Lá vai... - Viu? Acendeu tranqüilo. Agora bota a panela prá ferver. - Já botei. - Com água, não é mãe? - Claro, claro, peraí... - Cortou a cebola e o alho? - Eu não. Faca é perigoso. Tem um mix de temperos ótimo aqui. - Ih, mãe... Deixa que eu faço. - Tá bom. Eu fico com a louça. É mais seguro assim. - Olha a água. - Tô olhando. - Ferveu? - Há um tempão... - Por que não avisou? - Você não falou nada... - Tá legal, mãe. Bota o macarrão na água enquanto eu faço o molho de salsicha. - Cuidado, meu filho, a água pode respingar em você. - Deixa que eu ponho. Agora é só mexer de vez em quando. - Sinto cheiro de queimado. - É a

Obra do tempo

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Procurou a noite inteira por todos os bares e por toda a praia. Buscou atrás da orelha e no bolso da calça. Ao meio-dia, vasculhou a geladeira a procura do amado, talvez num pote lacrado. Como isso poderia ter acontecido? Estava com ele ali nas mãos e, em um segundo...Bulucutufe!!!Sumiu! Será que deixou de prestar atenção a algum detalhe? Refez todos os caminhos, todas as falas e gestos, vasculhando jardins, banheiros e elevadores. Tentara de menos ou de mais? Quem sabe dentro de outra bolsa ou outro casaco? Nada importante desaparece assim, deve estar por aqui, pertinho... Chorou muito, descabelou-se em noites insones e dias infindáveis. Depois de algum tempo, cansou de procurar e tocou a vida. Muitos anos depois, arrumando papéis velhos numa gostosa manhã bem acompanhada, encontrou o antigo namorado esquecido na segunda gaveta da estante da sala. Olhou longamente o objeto e se perguntou por que guardara aquilo por tanto tempo. Jogou fora e continuou a limpeza.

Sinto muito

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Eu sinto tantas coisas e as coisas Se apoderam de mim sem que Minha alma se aperceba do canto mudo das horas Padeço tal febre de catapora do vento entregue ao devaneio Besta- fera sigo obstinada O caminho tropego dos poetas perdidos Pois vivo o dia que nasce para matar a noite A aniquilar a fonte que cria a água e respira A arfa da solidão em goles múltiplos Solto golfadas de ar e o vômito fica Na dor de tua ausência

Porque o inferno se perdeu

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Bolas de sabão explodem alopradas pelo vento Pegá-las! Pegá-las em correria desatinada Canta de roda a ciranda que foi minha e foi tua No meio da rua que mandava ladrilhar Com cerol de vidro amassado com cola polar Batatinha-frita-um-dois-três vezes pula a perna num pé só Amarelinha de um ao céu, porque o inferno se perdeu No pique da bandeira hasteada no pátio da escola Hino nacional cantado de conga e meia três quartos Sempre desarrumados tal estratégia de queimado Corre! Corre que lá vem bola! Topada e ronxa Não dói nada. Nem sarampo, catapora ou febrão Impede correr atrás de doce em dia ou noite De São Cosme e Damião.

Abelhas e moscas

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Olhou para o ponto no teto insone e pensou: As abelhas e as moscas Devem ser da mesma raça Mas freqüentam igrejas diferentes.

A flor de Adriana

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Sentei na mureta da praça e, pela primeira vez depois que saí do prédio, levantei o queixo para a estátua úmida e dura como o meu coração. A sensação era igual a de abrir os olhos pela manhã: nada. Havia uma névoa torpe nos meus passos. Coisa estranha. O nada vem acontecendo todos os dias em todos os momentos. Por que continuar se só o limbo aguarda do outro lado da praça? Sempre achei incômodas essas pessoas que passam sorrindo para os próprios chinelos. É um sorriso cheio de prazer íntimo. O interessante é que não têm em comum a idade, a cor, o sexo, só o sorriso abestalhado. Lá vem o maior dos enigmas, a pequena Adriana e sua velha mãe sacrificada. Ela vem saltitando seus pezinhos gordos. Ao contrário dos outros, sorri para as árvores, abraça o pipoqueiro, acena para o mendigo e também para o guarda. Perito algum encontraria vestígios de lágrimas naqueles apaixonantes olhos mongóis. Seus cabelos feitos de nanquim balançavam inquietos. Ela me olhou. Desviei o olhar, sua felicidade me

O balde cheio

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Chovia, mas chovia muito na cidade maravilhosa. Mas era tanta torneira despencando dos beirais que não mais se via a via expressa, somente bueiros ferventes. O rio Carioca enlaçava-se às pernas hesitantes das almas encharcadas. Os inevitáveis carros dos bombeiros gritavam vermelhos ao fazerem marolas sobre as calçadas escondidas. As árvores dançavam bêbadas a música do caos, lançando folhas ao vento como filhos à própria sorte. Lá em cima, baldes sôfregos corriam de mão em mão, urgentes em salvar o barraco afogado. O céu rugia nas encostas lançando fleches assustadores no paredão de pedra, tal qual correspondente de guerra tirando fotos a cada rajada de raios torturantes. A geladeira pulou para cima da mesa, o fogão, já sem ar, soltava uma fumacinha ardida de gás. Balde de mão em mão, suor, balde, lama. O coração pulava apertado no peito enrugado. Balde, balde, barro, lama, suor e mais lama do céu crescendo de baixo para cima. Balde de mão em mão, barro, lama, mão e mais barro já em so

A garota do telhado

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Chegava da escola arrancando o uniforme e vestia somente um shortinho de algodão. Passava na cozinha, enchia um prato fundo de feijão com arroz e farinha. Comia sentada no chão fazendo bolinhos com as mãos, ladeada por gatos que destrinchavam sardinhas sobre um jornal. Terminada a refeição, divertia-se deixando que os gatos lambessem suas mãos. Corria para o quintal, alçava o muro e ganhava os telhados. Ali, era a rainha dos gatos, sempre com um séquito de rabudos no encalço. Conhecia os gatunos pelos nomes por ela mesma batizados. Brincava, cochilava e embolava com os felinos pelas telhas do quarteirão entre a Rua Uberaba e o Largo do Verdun. Os vizinhos já a conheciam, os cachorros também; nem por isso aceitavam aquela gata magrela em seus muros: latiam, jogavam água, praguejavam. Ela? Fugia como um gato, mas ria; coisa que os companheiros não sabiam fazer. O tempo foi crescendo, o short apertando, os telhados subindo, a noite chegando, as regras nascendo e os gatos morrendo den

Assombro tecnológico

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Ahrg! Celular vibrando no bolso sempre me assusta. Tem o efeito similar a enfiar o dedo mindinho na tomada. Se estiver no toque de voz, pior ainda. Assemelha-se a alguém bater na porta do banheiro quando estamos ocupadíssimos. Nunca espero uma ligação no celular. Não sei nem por que tenho esse troço. Quando estou escrevendo posso até ter uma síncope se receber uma ligação ou alguém tocar a campainha. E não tem como ignorar, é pior. E se for urgente? Alguém que amo precisando de minha atenção? Uma oportunidade impar? Pronto. Já estragou tudo; Não sei mais o que estava fazendo antes de ser ferozmente interrompida. Ciente de minha sensibilidade, procurei colocar um toque sutil e tranqüilo: o miado amoroso de um gatinho. Mesmo assim sou pega de surpresa. Minha gata está me chamando? Com fome? Com sede? Engasgada com uma bola-de-pêlo? Não tem jeito. Esse monstro não me larga.

Ontem encontrei o Tempo na esquina.

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Ontem encontrei o Tempo na esquina. Ele estava apressado, mas como sempre, disposto e bem apessoado. Falou rápido de seus novos projetos e da felicidade de me ver. Arrancou-me gargalhadas ao relatar suas últimas peripécias na noite anterior. Havia torturado algumas almas na madrugada e infestado de criação os insones. Agora não podia me dar muita atenção, pois o trabalho o chamava. Labutava em um projeto complexíssimo no centro financeiro. Coisa grande que exigia dedicação exclusiva. Não reclamou, embora tenha transparecido preferir as missões na beira da praia ou na floresta. Perto da despedida me encarou e não mediu escrúpulos no arremate: Onde você esteve? Nunca mais te vi...Andou dormindo, foi? Ando preocupado com o seu prumo...Descompassada, sorri e o abracei com tanto amor e carinho que tinha a certeza de não mais deixá-lo escapar. Gentil, aceitou o afago, no entanto, me afastou de seu corpo lentamente, beijou meus dedos, prometeu visita e telefonema, afagou meus cabelos e pediu

Vivo

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Artérias desentupidas Válvulas lubrificadas Sigo o rítmo do sangue Em glóbulos incansáveis Pulso absoluta O sentido mitral; Vivo, A conquista do meu, do teu batimento ecodopler abismal.

Branco

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Durante o apagão mundial, quatro canetas foram encontradas estateladas na calçada; sem tampas. A vermelha foi levada para o fabricante em estado gravíssimo, vazando muito pelo fundo. A azul, desacordada e já apresentando coloração azul-bebê, recebeu massagem na carga e respiração ponta-a-ponta ali mesmo no meio-fio. Melhor sorte não teve a esferográfica preta que estrebuchava com metade de seu acrílico afundado. Naquele vexame todo, deixaram a verdinha por último. Afinal, era a única aparentemente sem ferimentos e consciente. Embora imóvel, acompanhava os trabalhos dos para-médicos com atenção vegetal. Quando as demais vítimas já haviam sido socorridas, a verde gritou: “Papel! Papel!”. Respirou fundo e, entupida, desmaiou. Naquela fatídica noite, quem não conhecia lápis não escreveu. E o dia amanheceu em branco.

Os doze pecados

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Doze meninos estavam jogando bola no campinho Veio uma bala encontrada e ficaram onze; Onze barrigas estavam crescendo Veio o desespero e ficaram dez; Dez crianças estavam estudando Veio a miséria e ficaram nove; Nove atletas estavam treinando Veio o tráfico e ficaram oito; Oito artistas estavam criando Veio a censura e ficaram sete; Sete agricultores estavam plantando Veio a fome e ficaram seis; Seis pais de família estavam trabalhando Veio o desemprego e ficaram cinco; Cinco jovens estavam vivendo Veio o álcool e ficaram quatro; Quatro belos estavam se amando Veio a doença e ficaram três; Três poderes estavam conversando Veio a corrupção e ficaram dois; Dois poderes estavam disputando Um foi morto e outro ficou mudo; O um poder estava cansado Veio o sono e foi dormir cedo.

Analfabeto

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Quando o dia nasceu, já tinha terminado de ler o livro: foram trezentas páginas sorvidas sofregamente. Fechou os olhos para digerir tudo aquilo. Depois de quinze minutos ruminantes, teve uma revelação: não sabia mais ler, muito menos entender qualquer coisa escrita. Tinha sido abduzido pelos extraterrestres da ignorância. Desespero puro. Procurou no arquivo morto o abecedário, sem sucesso. Não havia mensurado o perigo subjetivo daquele romance. Nunca mais seria o mesmo. Correu até a sala e pegou o jornal do dia anterior tentando ler as manchetes. Nada, estava completamente analfabeto. Esperançoso, pegou papel e caneta para escrever seu próprio nome...Não sabia! O nome sabia, não sabia quais sinais usar para formar seu nome! A partir daquela manhã, seria escravo da TV para saber dos acontecimentos do mundo e, para formular uma opinião, ficaria vagando entre os amigos, mendigando impressões sobre o planeta, o aquecimento global e tal. Com os nervos germinando dos poros, agarrou-se ao pri

O botão do elevador

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Cada vez que apertava o botão do elevador acendia uma luz vermelha. Isso era todo santo dia: Inês acordava, fazia xixi, tomava banho cantarolando, escovava os dentes, alimentava e alisava a gatinha, lia o jornal, aguava as plantinhas, tomava café-com-leite e pão-com-manteiga com a família, arrumava a bolsa, vestia a roupa, calçava os sapatos, separava o dinheiro trocado para a passagem, beijava os seus, abria a porta, saía, fechava a porta, descia as escadas, atravessava a praça, pegava o ônibus, sentava na janela, descia no Centro, atravessava a rua, empurrava a porta blindex, dizia bom dia sorrindo para todos no salão e...apertava o botão do elevador. Era o momento em que o tempo parava, ali, em frente ao botão do elevador. Todo dia sentia um frio na nuca, olhava para a rua e dava uma vontade de sair correndo... mas sempre olhava de volta para o botão do elevador até acender a luz vermelha. Feita a luz, a partir daquele instante, não era mais a Inês que estava ali, a nossa Inês, lemb

Quase carnaval

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Veio apressado do supermercado, passou pela mureta da praça vazia e...parou. Meia-dúzia de jovens começavam a ensaiar no coreto algo que não se conseguia identificar: banda de pífano? roda de samba? marchinha? Sei lá, era legal. Moçoilos e moçoilas de pele limpa brilhavam com seus trompetes, flautas, violinos, tamborins, repiques, cuícas, surdos e mudos. O fim da tarde dormia nas calçadas depois de um domingo puxado de praia. Quase carnaval, quase fevereiro pulsando carioca entre o sol e a chuva quente. A Aquarela do Brasil vertia da fonte enfeitiçando os anjos da praça e fazendo revoada de pombos. Bagunçando o coreto, o bloco foi se formando, criando vida, ficando abusado. E foi chegando gente da praia, gente levantando dos bares, gente saindo da padaria, dos apartamentos escuros, gente de todos os lados, de cima e de baixo. Gente de peruca azul, gente de diadema com antenas, gente de óculos de abelha, gente rindo, gente cantando, gente...gente! Um enxame foi povoando o largo. Chegou

A estrela baga

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Eram amigos do colégio e tinham em comum o gosto pela poesia, rock’n’roll, praia e um fuminho de leve depois da aula. Naquele fim de tarde de verão, último dia do ano letivo, pegaram a moto e rumaram para Fernão Velho, bucólica cidadezinha do interior de Alagoas. Estava mais para uma vila nascida de uma antiga fábrica de tecidos do que necessariamente uma cidade. As casinhas de desenho animado eram todas brancas com janelas e portas verdes. Cercada de uma rara floresta tropical, mantinha a áurea misteriosa com o cruzeiro no alto de um morro refletido no grande lago. A fábrica fechara há muito tempo, aumentando a sensação de que tudo ali parara. Chegaram ao Cruzeiro em tempo de assistir o finzinho do pôr-do-sol. O céu rosado tingia a lagoa inspirando os dois a acenderem um. Enquanto André enrolava, Simone observava uma grande estrela perto do horizonte oferecendo luz branca azulada. Parecia oscilar para cima e para baixo. Deu o primeiro tapa e perguntou o nome daquela estrelona. Andr

Meu partido alto

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Ai que este homem não me deixa trabalhar! Olha que o feijão já vai queimar! Inventa corrida na praia para relaxar Passeio na feira e camarão para ele cozinhar Deixa muita louça para lavar E abre um vinho para namorar Ai que este homem não me deixa trabalhar! Olha que o feijão já vai queimar! Pára em todas as bancas de revistas para degustar Cata besteira no chão para a casa enfeitar Canta desafinado só para me encantar Preenche os meus minutos até me acabar Ai que este homem não me deixa trabalhar! Olha que o feijão já vai queimar! Traz flores roubadas para me amansar Enche meus olhos de cinema para conversar Cobre de livros minha mente quase a expirar E vive, eternamente, a me inspirar Ai que este homem não me deixa trabalhar! Olha que o feijão já vai queimar!

Crime seriado

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- O senhor confirma a compra no valor de U$ 3.500,00 na loja Sexy Shop Baby em Nova Iorque? - Não! Não confirmo! Eu já falei que não fui eu! Nem passaporte eu tenho e minhas milhas não dão direito a tele-transporte. - Estaremos estornando o valor na próxima fatura. - E os juros também porque eu não vou pagar essa conta. - Sim, senhor. Por favor, anote o número do protocolo. Nossa, que dia! Quem será agora? - Aaaalô! - Por que você me mandou este e.mail? - Como? - Eu não gosto desse negócio de pornografia infantil. Você está doido ou se fazendo? Ainda por cima para o email do meu trabalho. Tarado! Idiota! - O que é isso Pedro? Está me estranhando? Eu não te mandei nada e muito menos... - Olha, eu não quero nem saber. Tire meu nome de sua lista e não me ligue mais ou eu te denuncio. - Espera um pouco. Não fui eu. Eu jamais... Pipipipi... Essa agora. Clonaram meu email também. Vou cancelar essa porcaria agora mesmo. Senha não confere? Caramba! Vou à polícia logo. - Quero regi

Viva a natureza!

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Armou a barraca em dez minutos e correu pelado em direção ao mar. Ninguém à esquerda ou à direita. Abaixo só areia branca e oceano azul. Acima o céu idem. Perfeito. Organizara estas férias por três meses. Aproveitava a hora do almoço para pesquisar na internet os paraísos mais inabitados. Desenhou mapas, fez planilhas de orçamento, revisão do carro. Comprou barraca, saco de dormir e todos os mantimentos listados nos melhores sites de amantes de acampamentos. Leu livros de sobrevivência, de Robson Crusoé a Almir Klink. Reservou cadernos para escrever e clássicos para ler durante o exílio de vinte dias. Fez curso de pescaria e adquiriu kit completo. Levou o básico para cozinhar, mini-farmácia e tudo mais que um homem civilizado precisa para sentir-se seguro. Na primeira semana explorou o lugar, correu, nadou. Tirou fotos do pôr-do-sol, da espuma das ondas, da barraca, das formigas, dos coqueiros e de si mesmo orgulhoso ao lado da pesca. Escreveu laudas e mais laudas sobre o assombro do s

Placas da sorte

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Crônica vencedora do 1º Concurso Crônicas Cariocas 2008. Bonifácio, homem cumpridor de suas obrigações matrimoniais e de ofício, pagador de impostos e fiel súdito das leis e da ordem pública, vinha de sua pequena fazenda dirigindo seu fusquinha 74 pela BR.101 assoviando um samba de Noel. Viu a blitz e diminuiu. Encostou ao primeiro sinal da autoridade. - Bom dia, sargento! – Observando o uniforme do policial. - Documentos. - Está tudo aqui, senhor. - Ligue a lanterna, pisca-pisca, limpador de pára-brisa. - Sim, senhor. -Pneus novos? - Sim, senhor. Cuido deste fusquinha como um filho. - Extintor de incêndio? Última revisão? - Tudo aqui. Na validade. - O senhor faria um teste com o bafômetro? - Claro. Onde é que eu assopro? - Parece que está tudo bem. No entanto reparei que suas placas estão totalmente encobertas. O senhor sabe quanto custa a multa pela ocultação das placas do veículo? Uma fortuna! Falta grave. – Já balançando a cabeça e pegando o talão. Bonifácio, assustado, constatou q

Dia de centopéia

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O passa-tempo urbano predileto dos desocupados da praça São Salvador é assistir o estresse instalado no engarrafamento que se forma quando o ônibus 401 não consegue fazer a curva estreita em frente a farmácia porque tem um carro estacionado na esquina. Todo mundo já conhece o desenrolar dos acontecimentos: o ônibus pára, as buzinas começam e, mais ou menos cinco minutos de orquestra depois, o motorista do carro chega apressado, é vaiado e sai cantando pneu. Todos riem e o trânsito volta a fluir. Hoje não foi assim. O babaca da vez não apareceu. Depois de vinte minutos o engarrafamento já tomava não só a Rua São Salvador, como também a Marquês de Abrantes e a Senador Vergueiro. Perdeu a graça. Soltaram as buzinas e saíram dos carros para analisar o golzinho 1.0 cor de vinho, sujo...No vidro traseiro, um decalque sugestivo escrito “amor”. Em minutos tinha uma multidão em volta do criminoso. Impropérios cabeludos foram emitidos e começaram a chutar os pneus e a bater no capô. O pior é esp

Presente Globalizado

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Tem que ser um presente inesquecível. Ela gosta de bichinhos, mas não pode ser um passarinho, ou um gatinho ou um cachorrinho qualquer. Precisa ser um bicho diferente que ela nunca mais vai me esquecer. Loja de animal exótico, isso! Ela vai ficar doidinha. Nossa, quanta coisa esquisita. Cruz-credo! Esta lagartinha tem a cara bem estranha. Toda - toda. Vou levar, embrulha para presente. É filhote? Tudo bem crescer um pouquinho. - Ô amor... Um presente? Não precisava... - É um lagarto fortinho. O homem da loja chamou de Dragão de Komodo. - Lindo! A gente dá um nome mais legal, ele é tão simpático... - Vamos ver na internet o que o bichano come. Deixe ver, deixe ver... Ih, amor, aqui diz que ele pode medir até 3,00 m, pesar 120 kg e viver até 50 anos. Vai ficar difícil aqui na quitinete. - A gente deixa o tapete só prá ele. - Ele come carne. - A casa da minha tia está cheia de ratazana. - Diz aqui também que ele come qualquer coisa, baba bactéria, fede e tem um humor péssimo. Imagine se

Milagre

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O Cristo Redentor sumiu. E logo na noite da conquista de seu glorioso título de sétima maravilha do mundo. Carregado nos braços do povo que o elegeu, evaporou. Ficou só o pedestal no morro do Corcovado. Polícia federal acionada, as investigações engatinhavam em controvérsias desconcertantes. Consta no inquérito policial que, durante a festa do Berro da Viúva, no concorridíssimo sambão mensal no bar A Paulistinha, Ele teria sido visto tomando caldo de galo e água-de-coco. Não teria negado samba no pé e nem esquecido de louvar a velha-guarda. Teria saído com estilo: de mansinho, tomando destino ignorado. As buscas prosseguiram por toda a cidade. Relatos foram registrados de sua Santíssima presença em diversos lugares: em Vila Isabel, na quadra da Mangueira e do Salgueiro simultaneamente, na Lapa, no Estácio, no baixo Leblon, no Beco do Rato, na roda de choro da praça São Salvador e na praia de Copacabana. Nessa última, já na madrugada, teria lavado seus trajes santos no sal purific

Noite livre na prisão

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Parou no sinal fechando, amarelo ainda. Poderia ter avançado, mas estava distraída. Com o que mesmo? O celular que não pára de tocar. O que esse pessoal do escritório faz da vida? Sexta-feira, dez horas da noite? Ninguém merece...Mas se não atender é aquele estresse, fica mó climão na hora do cafezinho, olhar torto e tal... - Olha só, eu tô dirigindo, não posso falar agora. É rapidinho? Tá, então fala logo que eu tô no sinal e... - Perdeu! Perdeu! - Ai-meu-deus-do-céu! Calma moço, leva tudo, é tudo seu, é seu! Ganhou! Depois te ligo... - Cala a boca, vaca! Celular! Relógio! Bolsa! Se o carro andar vai ter miolo de madame prá todo lado... - Pronto, prontinho, tá tudo aí moço... - Não me enrola não! Não me encara não, que eu tô doido prá dar um teco num hoje. Passa o espelho do rádio! Vai morrê! Vai morrê! Vai, vai acelera vaca! Não olha prá trás! Vai, vai, vai... Foi. Estranhamente a Bartolomeu Mitre pareceu-lhe tão vazia, grande e silenciosa. Quanto mais acelerava, maior era a sensação

Porque o inferno se perdeu

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Bolas de sabão explodem alopradas pelo vento Pegá-las! Pegá-las em correria desatinada Canta de roda a ciranda que foi minha e foi tua No meio da rua que mandava ladrilhar Com cerol de vidro amassado com cola polar Batatinha-frita-um-dois-três vezes pula a perna num pé só Amarelinha de um ao céu, porque o inferno se perdeu No pique da bandeira hasteada no pátio da escola Hino nacional cantado de conga e meia três quartos Sempre desarrumados tal estratégia de queimado Corre! Corre que lá vem bola! Topada e ronxa Não dói nada. Nem sarampo, catapora ou febrão Impede correr atrás de doce em dia ou noite De São Cosme e Damião.

Notícias do limbo

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Querido amor, Trago notícias do limbo. Aqui não faz sol e nem chuva, frio ou calor. Os dias são iguais às noites assim como estas letras simétricas. Peço, desde já, desculpas pela forma sonolenta do relato, mas outra forma não haveria como chegar aos teus olhos, quiçá ao coração. Gostaria imensamente que recebesse esta cheia de descobertas e felizes encontros, flores na estrada e temperaturas inusitadas. Quero que saiba que jamais te escreveria à toa se, realmente, não estivesse esta pobre alma perdida entre um parágrafo e outro. Ciente e arrependida de meus crimes cumpro abnegada minha pena. Conto os dias com riscos na parede e, ao mirar o mural de retalhos, desespero-me com o tempo esquartejado e jamais recuperável. Daqui do limbo contemplo o infinito do que não fiz, do que não comi e, principalmente, do que não fui. Faz parte da pena a turbulência dos próprios pensamentos e o silêncio do futuro. Quanto tempo mais ficarei por aqui? Com certeza o meu nobre anjo está a perguntar. É nec

A casa do Seu Pedreira

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Seu Pedreira tinha como domicílio oficial a Praça São Salvador – oficial sim por que há relatos de que recebia cartas das mãos do próprio carteiro. Catava coisas na rua e papelão, principal matéria prima para confeccionar sua residência móvel, instalável em qualquer dos trezentos metros quadrados de seus domínios. Durante o inverno, no coreto; no verão, ao lado do chafariz. Mas era na primavera e no outono que sua criatividade aflorava: armava o barraco em qualquer recanto da praça, do parquinho das crianças ao canteiro dos cachorros. No entanto, nem tudo era flores para Seu Pedreira. Vez por outra agentes da limpeza urbana recolhiam seus pertences. O homem virava bicho. Xingava Deus e o Diabo e quem fosse portador. Era pedreira para acalmar o velho. Daí o nome. Diante dos inúmeros percalços, Seu Pedreira acordou um dia inspirado. Olhando fixo para as árvores viu a solução de seus problemas. Na calada da noite, aproveitando-se das folhagens densas, iniciou o grande projeto da casa na

A trocadora de sonhos

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Crônica publicada em 2007 na Revista de Domingo do Jornal do Brasil Dalva trabalhava naquela linha há vinte sacolejados anos. Viu o trajeto ser alterado em ruas que viraram mão outras que viraram pé. Atuou com muitos motoristas, alguns mal humorados, muitos cavalheiros, incontestáveis kamikazis do trânsito. Presenciou atropelamentos, quedas de passageiros em freadas, assaltos, trocas de tinta com táxi, moto, caminhão e, principalmente, outros ônibus. Mas, verdade seja dita, foi testemunha de aniversários, pedidos de casamento, raspadinhas premiadas, trocas de presentes, beijos, amassos e sarros. Por gosto, tinha o hábito de, depois de adquirir a intimidade do terceiro bom dia, perguntar ao passageiro como a ilustre pessoa estava, como tinha sido o seu dia, se tinha dormido bem...Ali na roleta, começou a atender uma clientela assídua, ansiosa por contar seus causos, conquistas e mazelas. Ouvia a todos, só interrompendo rapidamente para concordar, confortar, dar uma palavra de força. Qua

Emergência

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- Boa tarde, doutor. Estou morrendo... - O que a senhora sente? - Dor no corpo, febre, piriri, enjôo, ardência na gengiva quando bebo chope mal tirado e coceira no dedão do pé esquerdo...É grave? Cutuca daqui, escuta dali, luz na garganta, nos olhos, nos ouvidos, bolina barriga, sovaco, pélvis, pescoço e nuca. Sentença imediata: - É virose. Vitamina C, antiinflamatório por sete dias, antitérmico quando tiver febre e repou... - Virose? Mas que vírus? Ebola? Gripe espanhola? Herpes? - Virose simples, passageira. - E a coceira no dedão? - Frieira. Vou passar um talco e... - E a gengiva? - Não tem nada aparente, mas a senhora deve procurar um dentista regularm... - Mas assim? Virose e pronto? Sem tomografia computadorizada? Nem um modesto kit exame de sangue e urina? Fezes! Há muitos anos não faço um exame de fezes. Nunca gostei de sair por aí com aquele potinho cheio. Mas, pela saúde, faço qualquer negócio. O doutor não acha que pode ser uma solitária devorando as minhas entranhas? Douto

Mulheres, borboletas e moscas

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Acorda, corre para o calendário e pensa: Caramba, o dia dos namorados caiu no auge da TPM da Margarida. Estou ferrado. Não vai ser fácil escolher o presente. Toma banho caprichado, faz a barba e veste a camisa que Margarida deu no natal. Sem perfume para não irritar. Já no shopping, percorre as vitrines recheadas de roupas e bijuterias. Não cometeria o mesmo erro do ano passado. Não reparara que ela não usa brincos, anéis ou pulseiras e dera um conjunto completo; até hoje pendurados no gancho da rede do quarto a título de decoração. Com roupas ela não se empolga e livros é tão difícil saber o que ela não leu ou o que jamais lerá. Embora não se enfeite, Margarida decora a casa como um ninho de passarinho: vários pequenos objetos compondo um quadro caótico. Coisas coloridas achadas na rua, pequenos presentes e muita bugiganga. Sai do shopping frustrado e vai bater na feirinha de artesanato de Ipanema. Acha um troço lindo, a cara dela. Compra e passa numa floricultura. Rosas br

A urna e o gelo

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Acordou cedo, tomou banho e fez a barba. Procurou o título, mas lembrou ser a identidade desbeiçada o suficiente. Vestiu a camisa vermelha, achando-a por si só explicativa, e saiu fingindo indiferença de quem vai cumprir velha obrigação. Não tinha fila e os mesários estavam ali só para ele. Diante da urna, um frio covarde na espinha fez com que demorasse seculares segundos para tirar a cola do bolso. Digitou o número e teclou confirma. Tiririririm!! Acabou. Soltou um pumzinho aliviado e respirou orgulhoso. Tá feito. Sentia o corpo leve, mas sabia que teria de dar satisfações. Foi pensando no caminho pro trabalho: poderia mentir ou alegar que revelar voto é sacrilégio, ou melhor, dizer que esqueceu. Não vai colar. Começou a ficar nervoso só de pensar. Chegando na birosca da Dona Otília, viu a patroa com a cara azeda de costume. Dizem que sofre dos bofes. Ninguém para atender. Colocou o jaleco amarelo e antes de conseguir chegar no balcão, a peçonhenta atacou: - Votou em quem? Fingiu que

Calor, né?

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- Moço, aperte o número 23, por favor! Muito grato. - 12 - 5 - %#@!! - Senhor, qual o andar mesmo? - É surdo? 28. - Calor, né? - Vai chover. - Ôô... - Ainda bem que a viagem é rápida. TREC - Vocês ouviram um TREC? - Devem ser os cabos... - Ou os freios... - Freios? - É assim mesmo. TREC-TREC. Luz apaga. Pára tudo. - Ai meu-deus-do-céu!! - Calma, não foi nada... - Como “nada”? Não enxergo nada! - Vão ligar os geradores... - Daqui a pouco... - É só ter paciência... - É... - Aperta o botão vermelho! - Botão vermelho? - Onde? - Ôi? - Virgem Maria! Valei-me meu Jesus Cristinho! Não deixe que eu morra nesta lata de sardinha!! - Ninguém vai morrer aqui. Vamos sentar e esperar. (...). - Tô com o ar faltando...Uma angústia no peito... - Mas só se passou um minuto... - Não interessa, tô preso, sem ar. - Ih...O cara vai dar defeito... - Ninguém merece... - Relaxa, cara... - Deixa de merda... - Ai, minhas mãos estão dormentes, suando frio, a vista escurecendo...Ui... - Bate palmas... - Abre e fech

Segredo

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- Mas que merda! Tira esse troço preto fedido daqui! - Assim estraga a amizade. Qual é o seu problema com a minha mochila? Tu é racista, nêgo? - Racista é o cacete! Não gosto é de fedentina. O que tem aí dentro? A cabeça da tua sogra? - Antes fosse, colega, antes fosse...Vou te mostrar. - Nem pagando! Vira essa trolha para lá! - Não tem risco. É de comer. - Você acha mesmo que eu como merda? - Não. É queijo. - Queijo? Podre, é certo. - É francês. - Francês não toma banho e passa o queijo no sovaco enquanto prepara. Estou até vendo a cena...Credo... - O gosto é bom. - Deixa eu ver esse negócio. - Vou cortar um pedacinho para você experimentar... - Feio, ein?...Está mofado, seu idiota, joga essa porra fora! - Só um pedacinho... - Parece maluco. Tá querendo me envenenar? - Pára com isso, cara, você precisa quebrar esse paradigma, experimentar coisas novas... - Vou dizer já o que eu vou quebrar... - Ummm...Está uma delícia. Nossa, pena que você não consegue... - Se eu comer esse bolor você

Sábado de gato gordo

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Entrou no pequeno armazém como fazia nos últimos quarenta anos, mas baixou a grade em seguida. Determinado, correu até a pia e começou a preparar a coisa. Dois litros de óleo de soja, banha passada à vontade, um litro de creolina, uma concha de sabão em pó, Cinco ovos podres cultivados ao sol na véspera, duas pitadas de ódio e cem gramas de vingança. Misturou tudo até ferver. Cozinhou lentamente em mágoa branda. Para finalizar, preparou a calda grossa de impotência derretida em doses generosas de tristeza. Esperou a tarde cair. Deste sábado não passaria. Era certo. Sábados...Sábados...Lembrou das crianças fazendo fila para comprar pirulito de açúcar queimado, bala de tamarindo e maria-mole, branca ou morena. As senhoras, vindas da rua da frente e da rua de trás, compravam manteiga a granel, arroz do tonel, pomada Minâncora, Leite de Rosas e Polvilho Anticéptico Granado. Dava gosto ver aquele mulherio borbulhando, se misturando com o tilintar das garrafas de leite. À tarde, chegavam os

Manga com leite

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Entrou no boteco, bateu no balcão e gritou: - Bota aí um copo de leite batido com manga e chumbinho que hoje eu quero morrer! - Leite com manga? Não tem não senhor. - Ah! Então traz cachaça de cabeça e um chope. Na pressão. Demoro a morrer, mas morro! Virou o pedido e devorou uma empada de frango para empapuçar logo. Quem sabe conseguiria acabar com o sofrimento entalado? Fumou três cigarros emendados um no outro para não apagar. Tossiu tal qual cachorro sarnento, cuspiu no chão e latiu: - Hoje eu morro! Sai mais uma manga com leite na pressão! - ? - O mesmo! O mesmo! Tem que explicar tudo aqui... Mais três cigarros e pensou na Lurdinha rebolando com a safadeza dos dentes arreganhados no pagode. Aquelas toras de pernas suadas esbarrando em tudo quanto é tipo de malandro. Malvada. - Hoje eu morro e ela vai chorar rosas vermelhas de sangue no meu caixão! Mais um queijo com molho de manga! Abraçou os olhos com as mãos para não ver a lembrança de Lurdinha entrando no banheiro com o playboy

A fantástica viagem de Darwin pelo banheiro da Myriam

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Entrou no banheiro e logo percebeu o relógio analógico na parede. 20h20min. Olhando para o sanitário percebeu a indefectível balança ao lado. 52 kg. Sentou no vaso e liberou todas aquelas palavras líqüidas acumuladas na reunião. Muita coisa. Fechou os olhos até o fim dos trabalhos. Quando reabriu, viu-se sentada no vaso com os olhos arregalados. Sentiu um pulsar constante na cabeça e, por fim, processou o ocorrido: estava na parede, dentro do relógio: 20h25min... 20h30min. Viu-se levantar, vestir-se novamente e subir na balança. 20h32min. Sentiu a pressão no peito: 51,900kg. Perdera 100g e a identidade. O tempo passava latejando na nuca com o peso das costas. Pesaria sua existência apenas 100g? 20h33min. Como voltar para a reunião sendo uma balança-relógio? Calma, é a cerveja. 20h34min. Feche os olhos e abra a porta do banheiro para tudo voltar ao normal. Ao abrir, o que viu? Ledo engano. 20h35min. Melhor fechar. Impossível fechar. As engrenagens batiam no peito. 20h36min. Números surg

A lógica no altar

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Maria não acredita em azar ou sorte. Jamais se benzeu diante de igreja ou despacho, nem tão pouco carrega nos ossos fé em Deus ou no Diabo. Os anos forjaram sua personalidade pautada na lógica e na determinação. Hoje Maria viu a probabilidade de um por cento dar errado acontecer. Falhara nos cálculos, no projeto ou na execução. Talvez estivesse equivocada quanto ao objeto ou ao método inapropriado. Mas a verdade era uma só: fora derrotada e seus últimos cartuchos foram disparados naquele investimento. Sem que ninguém a atrapalhasse, meteu os pés pelas mãos, julgara mal as pessoas, fizera escolhas erradas e só existe um culpado: ela mesma. Não poderia culpar o azar do Diabo e nem pedir sorte a Deus. Saiu caminhando sem rumo pela rua e viu-se entrando na Igreja da Glória. O silêncio e a escuridão pesavam seus passos. Sentou diante do altar e chorou copiosamente. Chamou baixinho pela mãe e uniu as mãos em suplica. Tremia. Pensou em se ajoelhar, entretanto olhou para os vitrais e nada viu

Milhos e lírios

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Como era enfermeira, foi fácil escolher a roupa para o Ano Novo. Selecionou a calcinha amarela porque, neste Ano Novo, todos os sonhos seriam palpáveis. Vestiu as pulseiras, anéis, colares e o par de brincos brilhantes. Maquiagem leve, cabelos soltos e saiu, consciente de sua beleza madura, andando em direção à Copacabana. Na rua, comprou um ramo de lírios para a oferenda, um milho cozido a título de última ceia do ano e uma cidra para estourar na virada. Chegou no grande lençol branco, decorado com milhões de almas, quinze para meia-noite. Tinha tempo. Estendeu a canga de fitas do Nosso Senhor do Bonfim da Bahia, sentou olhando o mar e pensou: Os filhos, já criados, não mais abriam direito a voto em suas vidas. Os amores iam e vinham como as ondas, só molhando. Mas tinha a sua profissão, amor indissolúvel e confiável; plantões arrebatadores e, no final, o cansaço apaziguador. Levantou a saia bordada com pequenas contas até os joelhos, molhou os pés e pulou três ondinhas. Lançou os lír

Carvão e Costela

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Dois vira-latas puro sangue, pêlo curto, focinhos e rabos compridos e orelhas de abano. Iguais, só que uma marrom e o outro negro. Freqüentam a praia do Leme diariamente, a partir das sete horas da manhã. Chegam escoltando o Cara da prancha de surf. Entram os três no mar e, enquanto o Cara pega onda, Carvão e Costela fazem a festa. Pegam caixote, criam buracos, correm atrás de marola e pombo, embolam na areia, zapeiam prá lá e prá cá fazendo o que cachorro sabe fazer melhor: ser feliz. Nesta manhã de verão, Costela parece indisposta para eventos atléticos e prefere ficar deitada na areia acompanhando os movimentos das ondas, do Cara e do Carvão. Após alguns minutos de contemplação, a cadela levanta, acocora-se e solta o que lhe incomoda. Não costuma fazer isso na praia, sabe que não pode, mas foi, visivelmente, uma emergência quase liquida. O Cara nas ondas e Carvão nos buracos nem percebem a aflição de Costela cheirando aquilo sem saber o que fazer. O Senhorzinho, figura local que cor

Deu vaca

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Minha missão é relatar os fatos. Embora não tenha o lastro jornalístico, carrego a obrigação testemunhal; mais fácil, porém infinitamente mais espinhosa. Não é minha intenção fazer do nobre leitor meu álibe... Até porque, não é do meu feitio. Mas, acredite ou não, eu estava lá, vi tudo com estes olhos com que o fogo há de se deliciar. Foi numa final de manhã mágica de inverno tupiniquim. O céu tinha aplicado colírio e se oferecia límpido e brilhante. As árvores brisavam gostosas e soltavam confetes de folhas secas. As gentes prosavam sorrindo lentamente e efetuando a fotossíntese nos bancos da praça São Salvador. Nesse cenário idílico, da esquina do Corpo de Bombeiros, despontou Mimosa rebolando com a delicadeza de um lírio e o passo de uma escada magirus. Como o povo carioca não se assusta atoa, todos notaram, mas ninguém reparou na vaca gorda malhada entrando no fosso do chafariz. Mergulhou espirrando luz molhada para todo lado. A água jorrava da boca de peixes montados por anjos, qu