A casa do Seu Pedreira



Seu Pedreira tinha como domicílio oficial a Praça São Salvador – oficial sim por que há relatos de que recebia cartas das mãos do próprio carteiro. Catava coisas na rua e papelão, principal matéria prima para confeccionar sua residência móvel, instalável em qualquer dos trezentos metros quadrados de seus domínios. Durante o inverno, no coreto; no verão, ao lado do chafariz. Mas era na primavera e no outono que sua criatividade aflorava: armava o barraco em qualquer recanto da praça, do parquinho das crianças ao canteiro dos cachorros. No entanto, nem tudo era flores para Seu Pedreira. Vez por outra agentes da limpeza urbana recolhiam seus pertences. O homem virava bicho. Xingava Deus e o Diabo e quem fosse portador. Era pedreira para acalmar o velho. Daí o nome.
Diante dos inúmeros percalços, Seu Pedreira acordou um dia inspirado. Olhando fixo para as árvores viu a solução de seus problemas. Na calada da noite, aproveitando-se das folhagens densas, iniciou o grande projeto da casa na árvore. Fez a planta baixa para instalar no alto. Decidiu que seria de madeira. Passou o outono recolhendo material de demolição e pregando aqui e ali. Construiu uma escada discreta com ripas da cor da árvore. Achou no lixo um saco de lápis-de-cera. Durante o inverno desenhou no lado externo da casa todas as folhas e flores arquivadas na memória. Orgulhoso da camuflagem partiu para o interior. Desenhou aviões, foguetes, carros, crianças e bichos. Gostava mais do macaco rindo na cabeceira da cama. Decorou o lar com objetos valiosíssimos doados pelos sacos pretos: embalagens de batata-frita coloridas, brinquedos quebrados, garrafas pet, latinhas, vidros e flores de plástico. Construiu mesa, cadeira e armário. Para completar a obra, realizou seu sonho de menino. Fez um gigantesco móbile de arame, cacos de vidro e latinhas de alumínio. Enquanto o móbile rodasse brilhando sobre a sua cama, nada poderia atingi-lo.
Comprou cem gramas de mortadela e uma garrafa de cachaça para a grande inauguração. Ficou lá em cima cantando e dançando o novo lar. A festa durou três meses, tempo programado para a poda das árvores.
Seu Pedreira acordou com sol na cara e a moto-serra quente no lombo. Pulou num susto, pegou a munição – montanha de pedras portuguesas mantidas ao lado do colchão – e, aos urros, metralhou os operários com a determinação de um pastor alemão. Seus berros chamaram a atenção dos freqüentadores da praça. Janelas curiosas foram abertas e dedos-duros apontados para a árvore. O povo foi saindo dos bares, da farmácia, do mercado e convergindo para a árvore de Seu Pedreira. O velho gritava a plenos pulmões: - Socorro! Querem destruir o meu lar! Polícia! Bombeiros! Prefeito, Governador, Presidente, estão me roubando! Larga minha árvore se não eu mato! Ah!
O circo armado, personagens prontos, só faltavam as autoridades. Não demorou, chegaram junto com as emissoras de TV. Quem ligasse a televisão naquela hora veria a transmissão ao vivo de Seu Pedreira brandindo suas pedras e cuspindo fogo.
O público passou por várias fases emocionais. Primeiro o susto, depois a dó e por último a simpatia pela causa. Só quem conhece o povo carioca sabe o perigo que representa a simpatia coletiva por uma causa nessas terras quentes.
Enquanto lá no alto os bombeiros resgatavam Seu Pedreira, o povo indignado saia no tapa com a polícia lá em baixo. Coisa de dar inveja ao Green Peace. Ruas interditadas, cordão de isolamento, spray de pimenta, bandeiras quebradas e, muito barulho depois, o velho foi recolhido para o abrigo municipal.
A horda não deixou que destruíssem a casa na árvore. Fez vigília, deitou no chão, chamou ONGs, acionou o MP, a ONU e o escambau a quatro. Sucesso no Fantástico. Depois de um longo processo na justiça, a mansão de Seu Pedreira foi tombada como patrimônio cultural do Município. Instalaram uma placa ao lado da árvore contando toda a saga, com direito a foto do artista com pedra na mão. A prefeitura fez um cercadinho em volta da obra e cobra R$ 1,00 para quem quiser visitar o museu.
E onde está Seu Pedreira? Quem sabe? Que diferença faz?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Porque o inferno se perdeu

Nascemos vazios

Uma luva vermelha em Porto Alegre