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Mostrando postagens de 2009

Papo mole beira-mar

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Jorginho é taxista legítimo: folgado, cabeleira branca e barriga farta, boa praça, poliglota, puxa conversa até com surdo-mudo e conta histórias clássicas do cotidiano do Rio. Lábia afiada leva, na maciota do banco traseiro, a fauna e a flora carioca. Trabalha de segunda a domingo e de sol a sol. Ano novo entra em recesso. Encosta o amarelo na garagem do apartamento da mãe na Praça do Lido para passar a virada com a família; bem longe da lei-seca. No festão de 2009/2010 Jorginho manteve a carteira de motorista no bolso da bermuda só para não se sentir pelado e, quase na hora dos fogos, decorou os chinelos com areia e sentou de frente ao mar para levar aquele papo cabeça com Iemanjá. Negociou as posturas para o ano que prometia a saúde dos seus e as boas corridas, reclamou – de leve – das intempéries pessoais, do síndico, do trânsito, dos preços, todos loucos do ano moribundo. Empolgado, cobrou mais ação da Rainha do Mar diante de tanta bagaceira ocorrendo no mundo. A Senhora pode f

O dia de Opílio

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Opílio é o “cara”. Turma do deixa - disso, fala de veludo e pele de ébano. O sorriso conivente de anjo contrasta com os dois metros de altura com um de envergadura. Diga-se de passagem, porte totalmente desnecessário diante dos inúmeros pré-requisitos preenchidos de um tijucano culto, elegante e contido. Ocorreu que, naquela segunda-feira, Opílio entrou pela rua em que morava especialmente sem disposição para grandes ou pequenos debates, doido para tomar um banho e esticar o esqueleto diante da TV. No entanto, pressentiu com um arrepio na nuca, de que a noite seria longa. Não deu outra: em frente de casa viu, logo de cara, um Mercedes deitado sobre o seu jardim, entre eles o portão do lar todo contorcido. O “artista” tinha sumido deixando sua “obra” abandonada. Opílio não se fez de rogado. Certo de que o “artista” voltaria na madrugada para remover a “instalação modernista”, camuflado pela noite tórrida, sentinelou-se numa cadeira de praia ao lado do carro e esperou. Não deu

O bom samaritano

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- Tio, dá um trocado prá comprá um lanche. - Trocado é o cacete! Não tenho inteiro e nem trocado. E se tivesse não te daria, seu bosta! - Que-que-é-isso, tio? Tô só pedindo. - E já está me ofendendo. Sabia que você não era para existir? Pago imposto para que não tenha que ver coisas como você. Vai lá na Prefeitura, no palácio do Governo, não me interessa, vai lá pedir dinheiro para a puta-que-te-pariu; se é que você sabe quem foi. Vaza ou te encho de porrada. - Eu sou de menor. - Está na cara. Menor inteligência, menor saúde, menor limpeza, menor futuro. Ô aberração, tua mãe não te abortou por falta de grana. E não me olha com essa cara de gente que você não me engana. - Tio, paga uma empada então. - Mas você não vale nada mesmo. Nem vergonha tem. - Tenho sim, senhor. Tanto faz. Só quero comer qualquer coisa. - É. Parece que o merdinha está com fome mesmo. Aí, garçon, traz uma coxa de frango no papel para este infeliz. Agora, moleque, desaparece da minha paisagem a

No negativo é mais gostoso

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Devendo na padaria, na farmácia e no boteco, Lindinho das Beiradas, somada a ordem de despejo, começou a pensar na remota hipótese de procurar trabalho. Mas foi uma ideia que, graças ao bom Deus, passou logo quando tentou tirar no fiado cópias do currículo e o velho do armarinho fitou-o e, por cima dos óculos, pediu pagamento adiantado. Percebendo que seu crédito na praça encontrava-se sensivelmente comprometido, Lindinho não se intimidava, pedia aos amigos e familiares e pagava com eletrodomésticos velhos em troca de comida, o que na verdade não pagava nada. Depois de detonar os limites de cheque especial em três contas bancárias, partiu para o genocídio dos cartões de crédito. Agora sim, oficialmente falido, resolveu caminhar na praia e fiscalizar o ir e vir das ondas e o planar das gaivotas. Questionou-se, pela primeira vez, como conseguira torrar toda a indenização trabalhista e ainda ficar devendo a meio mundo em apenas três meses. Para uma empreitada dessas tem que ter vocação,

Caldo Verde

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Chegou ao restaurante de estimação seco por um caldo verde. Pediu no capricho. Veio batata processada com três fiapos de couve. Virou bicho. Chamou o gerente, bateu nos peitos, exigiu explicações, desculpas e uma porção extra de couve. Não foi atendido em nada; isto é, quase nada, pois a conta chegou certinha. Sorveu o caldo de batata reclamando entre os dentes. Não houve nem um plus a mais de couve. Não pagou os dez por cento e saiu decidido a difamar o recinto gastronômico. Jurou vingança e jamais recolocar os pés naquela espelunca. Sentia-se humilhado, traído, um merda. Escreveu uma carta mal criada para os principais jornais da cidade convocando o povo a um levante em massa contra o desrespeitoso restaurante. Sua vingança não teria limites até que as portas do estabelecimento fechassem por estar às moscas. Quando a carta foi publicada, veio junto o pedido de desculpas do restaurante, que vai reforçar o treinamento da equipe e blá, blá, blá...e volte por nossa conta! Todo o ódio d

Do lado da caixa-preta

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- Eu não gosto de viajar de avião. - Quase ninguém gosta. Eu adoro. - Sei lá, me dá uma gastura, um frio no esqueleto que vai da nuca até o pino da caçoleta. - É só relaxar e curtir a paisagem. - Se eu relaxar eu vazo. - Tenta ler a revistinha de bordo. - Dá uma tonteira danada. - O tempo todo? - Não, só quando eu pisco. Preciso conversar. Que tal acidente aéreo? - Credo. Não acho apropriado. - Interessante né? É a única coisa que me acalma; falar sobre turbina explodindo, identificação de corpos, busca da caixa-preta, essas coisas. Mas o que me deixa tranquilinho mesmo é papo de turbulência e tempestade. Lembra daquele avião pulverizado no Atlântico? - Sei. Tragédia. Sofrimento. - Pois é, toda vez que entro num avião fico pensando ser meu último voo. Na verdade sonho ser o único sobrevivente, salvo milagrosamente pelo assento flutuante. Depois as entrevistas, escrever um Best-seller e - quem sabe? - até um filme em Hollywood. - Não acredito que seu sonho se realize neste voo. O céu e

Sem culpa

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Não adianta insistir. Não carrego a culpa dos judeus nem os pecados dos católicos. Nunca fui perseguida como os palestinos nem escravizada como os africanos. Não fui vítima de preconceito, maus tratos e desconheço humilhação. Conjugo verbos intransitivos com gays e homofóbicos. Cultivo machistas e feministas no meu jardim que crescem a olhos vistos. Bebo um mixproteico de militantes esquerdistas com militares torturadores no café-da-manhã. Com padres e ateus tempero minha sopa de legumes. À minha mesa farta são bem-vindos analfabetos e intelectuais, desde que não me encham o saco com abduções, catequeses e verdades absolutas. Bebo a abstinência e fumo a culpa alheia. Para quem se importa, estou rindo por baixo.

Canto para Anita

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Morava em uma frondosa árvore na Rua Senador Corrêa. Tudo ia bem até que, no primeiro dia de verão durante uma tempestade magistral, caí do ninho. Não estava pronto ainda. Todo molhado, me vi tremendo no batente de um salão de beleza. Fiquei um tempo andando e piando por ali, já que voar ainda não sabia. De repente, mais do que de repente, apareceu uma vassoura. Pulei em cima e logo me puxaram para dentro. Tinha um monte de passarinha gigante piando muito. Fiquei meio tonto e depois de um tempo, já estava com minhas garrinhas pintadas, uma de cada cor. Ficou legal, e resolvi ficar por ali mesmo. Chegou o Natal e, enfim, minhas asas e cauda cresceram; foi uma grande festa no salão: deram-me banho de creme hidratante, para as penas, finalização com gel. Não tinha gaiola porque alguém falou que rouxinol não se cria preso. Então, era livre para voar no salão inteiro. Muita gente, ciente, criticava alegando que eu estava preso quando deveria estar cantando livre numa árvore, no Canecão ou -

Tô passando

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- Sabe aquele cara que me passou o celular na boate? - Claro! Gatíssimo! - Pois é, passei. - Jura? Conta! Conta! - Passei adiante. O cara é um mala. Passou um tempão falando dos dotes culinários e santidades da mãe. Quando mudou de assunto, diante de minha cara de paisagem, quis saber mais de mim. Até me empolguei. - E você? - Antes que eu falasse qualquer coisa ele perguntou qual o meu time. Quando respondi que não tinha, ele passou meia-hora tentando me converter ao vascainismo. - Ninguém merece... - Pois é, menina. Tentando salvar a noite falei que gostei da camisa vermelha dele. Prá quê? Ele desembestou: disse que sempre usa vermelho para combinar com a cor do carro; que ele fez questão de salientar que era um Audi, com roda de magnésio liga-leve... - Liga-o-quê? Tipo leite de magnésia? - Sei lá, deve ser. Um carro supermegaultra um monte de coisa e blá, blá, blá... - Como você saiu dessa roubada? - Quando o monólogo já beirava a calibragem dos pneus da Formula 1, entreguei os pont

Onze a nove

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Primeiro a rainha do oriente derrubou a primeira torre. Sem defesa, o rei viajandão do novo mundo viu sua segunda torre ruir sobre um exército de peões aturdidos. Sua rainha descansava e nada sentiu. Os bispos postaram-se silenciosos em defesa do rei, mas recuaram diante de uma muralha estratégica de bispos adversários suicidas. O rei, à frente da opção de salvar sua rainha e o restante de seu povo deitando-se honrosamente sobre o tabuleiro, subiu ao púlpito e jurou vingança. Num último movimento desesperado, virou o tabuleiro fazendo com que seus homens e adversários embolassem numa única estatística. Enquanto isso, o rei do oriente comemorava nas montanhas. A partida acabou sem que restasse em pé uma peça de testemunha. Pretas e brancas jaziam entre os quadrados manchados pela batalha. Só quem ganha é a guerra porque, para os reis, o jogo nunca termina.

Saiba que as coisas não são tão simples assim

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Saiba que as coisas não são tão simples assim. Um dia você está aqui, no outro não. Você acha isso simples? Pois não é. Não estar aqui é obvio que não é simples. Só em não estar cá há a hipótese de estar em qualquer outro lugar ignorado ou não estar em lugar algum; o que é muito grave. Estar aqui já configura um fato extremamente complexo. Exige matéria, consciência e testemunha. Só esses três pré-requisitos já complicam a coisa toda. Pode ser romântico, mas você não pode estar em um ambiente saudoso só em pensamento. Esquece então aquele papo cabeça de tele-transporte, sexto-sentido, etecetera e tal. Sua matéria é uma massa cansada e pesada que tem limitações existenciais: precisa estar inteira para ser considerada presente. Também não basta estar materialmente aqui. É preciso saber que está aqui. Os paralelepípedos podem ser vistos, mas não estão aqui. Nunca soube de um paralelepípedo que questionasse se sua vida seria melhor se estivesse encravado em uma avenida arborizada e não n

Pequeno momento carioca

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 Mulher! Liga essa água pelo-amor-de-Deus que eu estou todo ensaboado!  Ih, homem... Parece que a caixa está vazia.  Traz um balde, então.  Nadinha.  Do filtro. Tira do filtro que eu já estou tremendo e todo ardido nas partes.  E eu vou cozinhar com o quê?  E eu vou trabalhar com o cabelo duro e todo escorregando?  Passa a minha toalha que está úmida.  Que m@#&erd@ é esta? Um copo d’água?  Metade para escovar os dentes e a outra para enxaguar as partes.  E a barba?  Faz à seco e passa álcool. Vestiu o uniforme, pegou o engarrafamento de rotina. Descendo do ônibus pisou em titica de cachorro. Chegou ao escritório suando espuma de 40° à sombra. Correu para o banheiro para lavar o sapato e enxaguar a cara. Passou a mão no cabelo duro, olhou pela janela a baía da Guanabara rindo aos pés do Pão-de-Açucar e pensou : Que cara de sorte eu sou.

Os maravilhosos domingos de Constantina

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Todo domingo tem feira de artesanato e chorinho na Praça São Salvador. É muito colorido e alegre. Nunca para Constantina que cultiva críticas ao belo como se fosse um vaso de espinho raro. Caipirinhas com frutas exóticas, crianças correndo aos berros, velhos jogando dama nas mesas de granito, pula-pula, pipoca, fotografias antigas, livros raros, bolsas bordadas e tudo o mais muito caprichado. Com toda essa felicidade latente, Constantina sai de seus aposentos, também todo domingo, só para implicar. Sem um centavo se quer na bolsa, pergunta preço só para reclamar que está caríssimo para camelô que nem paga imposto. Estranha um objeto, ao saber se tratar de uma luminária diz ser a coisa mais feia que vira em sua longa vida. Abre caminho entre as pessoas à bengaladas resmungando que ninguém mais respeita idoso. Manda o chorinho tocar Ataulfo Alves e não aquela porcaria. Xinga as crianças de mal-educadas porque os pais ficam enchendo a cara em vez de domar aqueles monstrinhos. Abana fumant

Sobre a solidão das rosas

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Marlene mora sozinha e trabalha na biblioteca desde sempre. Acorda tarde porque dorme e labuta até o fim da noite. E também porque não tem um bichinho para alimentar ou para brincar ou para ficar olhando. Todo sábado vai à feira comprar víveres e rosas vermelhas que ninguém mais, além dela mesma, verá sobre a mesa da sala. Todas as noites senta-se à mesa admirando as pétalas ao som de jazz regado à vinho tinto seco. Escreve num caderno florido suas impressões sobre o mundo que nunca serão lidas. Compra bens que jamais serão aproveitados por ela ou por herdeiro algum. Limpa a casa somente para que o vento suje. No trabalho conheceu Anselmo, frequentador diário da biblioteca. Conversam pouco, só sobre os livros a serem consultados. Com o tempo Marlene foi desenvolvendo um carinho especial por aquele homem sério, contido e elegante que sempre trazia uma rosa vermelha na lapela. Num dia de ousadia, comentou que amava rosas vermelhas e que sempre as tinha em casa.

Conselhos contemporâneos

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Não beba álcool ou refrigerantes não fume não coma carne vermelha ovo cru nem frituras nada de massas ou molhos e procure relaxar cuidado com alimentos ácidos não brigue não grite não faça ou diga nada que possa vir a se arrepender depois e não guarde mágoas não seja sedentário e nem peque pelo excesso de exercícios evite lesões não durma pouco e nem demais não deixe para depois o que pode fazer hoje e curta o ócio tenha um tempo para você sem jamais ser solitário mantenha-se atualizado e atenção para não se viciar em jornal e internet cuidado com a vista use óculos escuros protetor solar esfoliante creme hidratante mas não deixe de pegar sol para sintetizar as vitaminas cuide bem dos seus joelhos mantenha os exames preventivos em dia e siga todas as orientações médicas não use cotonetes sempre mas use-os regularmente economize água energia não suje o planeta e não esqueça de tomar banho diariamente não use sapatos desconfortáveis mas não ouse comparecer a uma reunião importante de ch

O mar de Beth

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Cada um que chegava, batia seu ponto e sentava imediatamente à bancada de trabalho. Com o consumo das horas, o falatório aumentava cada vez mais. Beth não se estressava, nascera para o SAC. Atendia cada consumidor como um destemido salva-vidas. Lançava-se em ondas gigantescas para resgatar um direito perdido ou uma informação afogada. Sabia ouvir o desespero sem perder o controle da maré. E ainda guardava fôlego para, ao final, reanimar o cliente com massagens no ego e soluções salvadoras. Nunca perdera uma vida, isto é, um cliente. Tal qual heroina de guerra, mantinha as inúmeras condecorações penduradas no lado esquerdo do peito. Em sua primeira ligação do dia, sentiu a maresia gelada do outro lado da linha: - Bom dia? Só se for prá você!! Quero encerrar a minha conta agora e não aceito argumentações. Não ouse desligar ou transferir esta ligação para o setor X, Y ou Z, pois anotei seu nome, cara Beth! Fui claro? - Muito claro, senhor. O senhor gostaria d

O carcará de pés azuis

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Batizou o filho com nome nobre: Artur, o rei, não teria futuro semelhante aos seus; nascera para ser grande. Em que? Não interessa, Deus sabia, avisou. Foi numa alvorada abafada que, Maria, sôfrega, trincou os dentes no paninho e expulsou o rebento do paraíso. Quase não sangrou e, ao ver a luz, Artur chorou. O pai olhou pela janela e viu o céu cor-de-rosa paralisar as folhas do cajueiro, de susto. O carcará espreitou a moita, inerte, calculando o sabor da presa. Antes que a nuvem soçobrasse na caatinga, um assovio de assombro virou vento embolando a cortina de chita, assustando as moscas posseiras do cão esquálido que dormia ali, na sombra de qualquer coisa parada. A ventania veio no maior vexame: corre daqui, corre dali, tira a roupa e o charque do varal, bota as crianças pra dentro e fecha a porteira cacarejada das galinhas. Era o aviso. O pai, mais que depressa, pegou Artur entre as mãos rachadas e o ergueu aos céus para ser abençoado. O Celeste arrancou de Artur o cueiro em

Pequeno poema pueril: pobre poeta

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Pesco palavras perdidas Próximas ao perpétuo padrão Pelo paradoxo prolixo Peço perdão Perto das pendências Peco pelo pontual pedaço provocador Pendente na persona palhaça pestilenta À pedra e à pá persigo A prosa prostituída, parto Para a paródia proscrita Presa perene das patas Provocadoras do peito pétreo Paro e penso pouco Pois provo a parcos pingos A promessa de paixão

Sonrisal extra

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Tem cara de vaca e boca de amendoim. Atende a todos na velocidade de uma preguiça e o olhar simpático de uma sucuri. Atencioso com os clientes, cumprimenta com uma gargalhada de hiena e um tapinha de urso nas costas. Sua pele de jaca harmoniza-se perfeitamente com as orelhas símias. O corpo, inspirado em uma cruza de peixe-boi com tartaruga, aparentemente só é capaz de mover a cabeça, as mãos e os pés. Mantém as garras felinas cravadas no balcão enquanto a vítima decide se sai correndo ou pede um Sonrisal extra. Quem entra pela primeira vez na farmácia de Seu Manfredo precisa ser preparado para o que vai encontrar, do contrário perderá a oportunidade de conhecer a pessoa mais gentil e honesta posta no mundo. Em seu coração jubarte cabe toda a cidade e quando alguém morre, Seu Manfredo uiva de dor junto ao caixão. Frequenta todos os casamentos e batizados, sempre aprumado como um pavão sequelado. Faz curativo na molecada e dá injeção de graça nos velhinhos. Nasceu para servir. T

A princesa e o poeta

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Nestor apresenta-se como poeta prolífero e radical, mas nos últimos tempos anda carente de musas inspiradoras. Vagando cabisbaixo pela Rua Bento Lisboa, por descuido, entrou no aviário. Parou diante da gaiola e viu-se arrebatado pelo olhar de uma galinha cor de mel. A penosa gritou e Nestor arrepiou-se todo. Foi amor à primeira vista. Comprou o bicho e correu prá casa ofegante. Batizou a ave de Princesa e passou a tarde toda assistindo a diva ciscar no tapete. À noite, com o apartamento já todo cagado, o poeta começou a escrever seu poema épico galináceo. Varou a madrugada digitando os versos sofregamente enquanto a mascote dormia no sofá. Desencanara, estava de volta à velha forma. Como não pensara nisto antes? Uma galinha princesa! No dia seguinte, para comemorar com os amigos o triunfante retorno da inspiração, preparou Princesa ao molho pardo.

Amor, enfim

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Aos 86 anos ainda sente no vento o perfume do amado. Fala dos gostos do homem e, feliz, anuncia os 57 anos de casada. Que homem maravilhoso! Declara. Lembra da mão máscula e gentil segurando-lhe a nuca, deitando-a levemente antes das núpcias. As flores de jasmim roubadas e arrumadas na lapela. Os beijos, os partos, a casa, as festas, a jura eterna e a luz da vela. Vê o sorriso dele no filho e a determinação na filha. Cultiva esse amor todos os minutos em que a natureza lhe reserva de lucidez. Pede um peixe ao molho de camarão como o amado fez há 50 anos naquelas últimas férias de verão. Leva a mão inchada e trêmula aos lábios, acaricia-os como se seus dedos não fossem os próprios a digitar a pele murcha. Olha para o céu e geme baixinho: Estou aqui, amor, me leva...

Tomate e o anel

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“Óia o picolé Colegial aí ó!”. Assim passa Tomate do forte do Leme ao forte de Copacabana, pelas areias escaldantes, indo e voltando do nascer ao pôr-do-sol. De pele originalmente branca, de tanto curtir ao sol ganhou o apelido. Gosta de catar objetos esquecidos na praia que pendura em um cordão no pescoço. Tem anéis, pulseiras, lacinho de cachorro, forminha e pá de brinquedo e qualquer coisa colorida ou brilhosa que encontrassem seus pés na areia. Semana passada Tomate tropeçou num anel prateado com uma pedrona de vidro. Achou lindo e pendurou em local de destaque: no meio dos peitos. Não andou nem dez metros para que uma mulher aos gritos apontasse para ele: - Ali! Ali! - Calma, picolé Colegial chegando! - Meu anel! Ele roubou o meu anel! Chamaram a polícia. Juntou gente, salva-vidas, vendedor de milho, surfista, jogador de altinho, cachorro e o escambal para defender Tomate, que já declarava: - Roubei nada, achei tudo. - Seu policial, o anel sumiu do meu dedo! - E apareceu no ded

Prosa vice-versa

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Helô não admite ser chamada de mãe de juiz ou vagabunda, diz ter apenas uma essência ordinária. Mora há cinco anos com um companheiro fiel e trabalhador que, compreensivo, sabe da natureza arbitrária de Helô e a sustenta com orgulho. Ela declara amor eterno ao “Seu Corninho”, como ela mesma o chama carinhosamente, mas que na hora do sexo gosta mesmo é de mulher com bundão; embora dê o rabo pro maridão uma vez por semana a título de prêmio. É homem bom e de poucas palavras e taras. Muitas tem ela, o que não é segredo prá ninguém; nem para a filha adolescente que vê na mãe uma mulher honesta. Ninguém duvida. Helô fala a verdade o tempo todo. Poucos aguentam tanta desfaçatez. É mãe de família zelosa e dona de casa caprichosa. Faz questão de mostrar a foto do “Seu Corninho” e da filha no celular ao mesmo tempo que belisca a bunda de uma morena distraída. Fala alto, cospe no chão, joga bola e porrinha com os amigos do bar. Tem a boca carnuda de onde sai os piores palavrões encaixados em f

Eu amo você

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Eu amo, amo muito. Amo os setenta anos de minha mãe, mulher guerreira e seus cabelos cor de laranja no leito de morte. Amo despudoradamente os olhos infantis de meu pai viajando indefinidamente em nuvens imaginárias. Amo sim os sábios fantasmas de minha bela irmã, as ausências do forte irmão caçula e as reticências do irmão artista reticente. Amo não, adoro, a minha terra alagoana, esturricada e estuprada sistematicamente pelo poder. Amo, amo, cada vez mais o envelhecimento luminoso de meu homem ao meu lado. Amo os meus amigos pelos simples fato de verterem a pureza bruta dos que escolhem com quem estar. Amo a minha gata dormindo, miando, lanchando pelo. Amo demais, venero a dureza pura de meu filho e seu coração explodindo em paixões. Amo todos os seres vivos, pois deles me alimento, amo a praça, a folha e o vento, meu vento que corre, corre, corre. Amo você porque me lê e também tem seus amores. Amo, não temo, amo, amo e amo cada vez mais o meu direito de amar.

Cida e a televisão

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O conto Cida e a televisão foi o líder da rebelião da gaveta verde e o primeiro a obter êxito em sua fuga. Atendendo a pedidos de familiares, concorreu e está classificado entre os 10 finalistas do concurso Contos do Rio 2006. Oficialmente anistiado com sua publicação no caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo, em 29/07/06. Abrir um crediário é negócio complicado. Só por necessidade. A televisão, de imagem preta tremida e branca fora-de-foco, foi sendo invadida por um exército de fantasmas cinzas e, assim, se anunciava o fim. Assistir novela das oito com fantasma é uma coisa mas os jogos da Copa é tortura! Já pensou ver os canarinhos cinzas levantarem a taça preta? Uma TV nova seria um sonho, sonho que virou aflição quando, em plena final da Taça Guanabara, o Fogão ganhando de virada, a desgraçada vai fechando os olhinhos até ficar apenas uma linha triste de luz, último suspiro. Morreu de vez. Foi coisa de urgência abrir o crediário complicado. Sorte a patroa ser gente boa na hora

Escrever direito

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Pensar e não escrever é inafiançável Visto que tortura é crime hediondo. Escrever expulsa e mais aprisiona Pois se trata de pena de banimento. Só divulgar liberta Isto posto, transito em julgado, Sem direito a recurso, Voa a palavra solta.

A aula na esteira de malas

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Sábado, oito horas de manhã de Sol, avisando: - Vou chegar a pino!! Enquanto a maioria dos nativos dirige-se em hordas às praias, cinqüenta almas acomodam-se nas cadeiras canhoto-que-se-ferre para a aula-revisão-simulado de língua portuguesa. Nos olhares vagos no teto, no chão, no ar quente e em cada testa está escrito: Por que eu matei aquela aula da tia Samaritana na quarta série? Para trocar figurinha ou para jogar queimado? Nunca saberei...Seria possível desvendar os mistérios da língua-mãe nas próximas cinco horas? - Não desiste não! Não desiste não! O mestre negão entrou na sala, cheio de vontade. Só na entrada, tirou metade da turma do limbo e o restante prometia. Exercício vai, explicação vem, pergunta vai, resposta vem. Sempre tem na turma uma mala que sabe tudo, antes mesmo das demais babas reticentes entenderem a pergunta, a encomenda empacotada responde tudo certo. Uma vaga já é dela. A auto-estima já no dedão, escorre para o cantinho da unha encravada. Vai ser de lascar. A

Queridas latinhas

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- Sabe aquele monte de latinhas fedorentas? - O que tem? - Estava ocupando muito espaço na estante. - E? - É. Vendi. - Você vendeu a minha coleção de latinhas que junto desde o meu primeiro porre? - Essa mesma. A estante agora cabe até livro. - Você enlouqueceu? Não me respeita mais? Jogou toda a minha história no lixo? - História? Você passou a vida toda de porre; não se lembra de nada mesmo. - O que você fez com o dinheiro? - R$25,00? Paguei o salão. - R$25,00 por 250 latas, dezenas raras e algumas de cervejarias extintas para pagar tinta de cabelo! - Reciclagem. Palavra de ordem do momento. - Não posso acreditar, Ester. Todo o nosso amor, carinho, amizade reduzido a R$25,00. - Menos drama, Abelardo, menos! Foram só umas latas velhas... - Ester, você não consegue entender, você destruiu tudo que ainda poderia haver entre nós. - Deixa de besteira homem, sou eu, sua fiel escudeira. - Não, mulher. Não reconheço mais em ti uma companheira. Estou indo embora traído. - Não esquece o casaco

Lista de ódios

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Quando eu tinha doze anos escrevi minha primeira lista de ódios. Nela incluí a professora de matemática rindo da minha prova e a boazuda da rua implicando com os meus peitos inexistentes. Lá figuravam as discotecas e qualquer coisa que brilhasse, a escola, os amigos (todos inimigos em potencial) e a sindica do prédio. Não poupei nem Deus e nem o Diabo, escrevi tudinho mesmo. Até mesmo calçada com pedras portuguesas porque eu odiava pisar em linhas. Com o passar do tempo fui atualizando a famigerada lista que crescia a olhos vistos. No auge da adolescência, contabilizava mais de cem ódios, dos quais vinte profundos. Alguns ódios se mantiveram durante anos nas primeiras colocações, como matemática, ditadura militar, chocolate, anel, perfume, esmalte, dobradinha, maquiagem, apito de guarda noturno, carro, gente que grita e gente que não fala nada, mas ri o tempo todo. Um dia, inspiradíssima, encontrei um novo ódio e escrevi sem pensar: Odeio odiar. Aquilo me arrepiou até o pino da caçolet