Queridas latinhas


- Sabe aquele monte de latinhas fedorentas?
- O que tem?
- Estava ocupando muito espaço na estante.
- E?
- É. Vendi.
- Você vendeu a minha coleção de latinhas que junto desde o meu primeiro porre?
- Essa mesma. A estante agora cabe até livro.
- Você enlouqueceu? Não me respeita mais? Jogou toda a minha história no lixo?
- História? Você passou a vida toda de porre; não se lembra de nada mesmo.
- O que você fez com o dinheiro?
- R$25,00? Paguei o salão.
- R$25,00 por 250 latas, dezenas raras e algumas de cervejarias extintas para pagar tinta de cabelo!
- Reciclagem. Palavra de ordem do momento.
- Não posso acreditar, Ester. Todo o nosso amor, carinho, amizade reduzido a R$25,00.
- Menos drama, Abelardo, menos! Foram só umas latas velhas...
- Ester, você não consegue entender, você destruiu tudo que ainda poderia haver entre nós.
- Deixa de besteira homem, sou eu, sua fiel escudeira.
- Não, mulher. Não reconheço mais em ti uma companheira. Estou indo embora traído.
- Não esquece o casaco, está uma aragem fria lá fora.
Saiu batendo a porta e seguiu direto para o bar dividir a cerveja e sua dor com os amigos de fé. Lá pelas tantas, Abelardo se abraçou com uma latinha e foi pela rua desviando de parede, poste e meio-fio. Abriu a porta e encontrou Ester chorosa, arrependida, vestida de camisola de florzinha e bobis nos cabelos. Estava linda com as bochechas rosadas e úmidas. Jogou-se em seus braços sem soltar a latinha. Beijou-lhe a testa enrugada e as mãos ásperas e suspirou:
- Perdão, amor! De que valem essas latas diante de nosso amor?
- Não, não! Você tem razão; eu não tinha o direito...
Abelardo sorriu de olhos fechados e foi deslizando pelo corpo de Ester até desmaiar no tapete. Ester beijou-lhe os cabelos brancos, cobriu-o com um edredom, recolheu a latinha e colocou-a na estante da sala.

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Lindo. Ternurento. A redenção dos companheiros ao fim de tantos anos.
E não é que eu me lembrei que tinha uma coleccção de latinhas que continuam lá no sotão dos meus pais ...

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