Do lado da caixa-preta



- Eu não gosto de viajar de avião.
- Quase ninguém gosta. Eu adoro.
- Sei lá, me dá uma gastura, um frio no esqueleto que vai da nuca até o pino da caçoleta.
- É só relaxar e curtir a paisagem.
- Se eu relaxar eu vazo.
- Tenta ler a revistinha de bordo.
- Dá uma tonteira danada.
- O tempo todo?
- Não, só quando eu pisco. Preciso conversar. Que tal acidente aéreo?
- Credo. Não acho apropriado.
- Interessante né? É a única coisa que me acalma; falar sobre turbina explodindo, identificação de corpos, busca da caixa-preta, essas coisas. Mas o que me deixa tranquilinho mesmo é papo de turbulência e tempestade. Lembra daquele avião pulverizado no Atlântico?
- Sei. Tragédia. Sofrimento.
- Pois é, toda vez que entro num avião fico pensando ser meu último voo. Na verdade sonho ser o único sobrevivente, salvo milagrosamente pelo assento flutuante. Depois as entrevistas, escrever um Best-seller e - quem sabe? - até um filme em Hollywood.
- Não acredito que seu sonho se realize neste voo. O céu está limpo. Tudo está bem.
- Nunca se sabe quando o comandante erra o plano de voo, ou um parafuso dos flats fica gasto, ou o trem de pouso emperra.
- A manutenção é rígida e o treinamento constante.
- Errar é humano e esses aeronautas trabalham sob pressão.
- O senhor parece meio pessimista.
- Realista. Estudo o assunto, mas entendo a inocência dos leigos.
- Sou otimista. Estudo as pessoas e o senhor é muito chato.
- Aeromoça, socorro! Quero trocar de lugar. Este senhor está me incomodando.
- Eu? Não sou eu que tenho medo de voar e também não tenho uma nuvem negra sobre a cabeça.
- Por favor, moça, seja rápida. Eu não estou me sentindo bem. Quero ficar no rabo do avião, do lado da caixa-preta.

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