A nossa ditadura militar foi sólida, líquida ou gasosa?


Venho acompanhando, meio sorumbática, essas “revelações” escabrosas durante o cinquentenário do golpe militar. Nasci em junho de 1963, logo o governo militar me acompanhou desde as fraldas como uma entidade onipresente regendo minha pátria durante vinte e um anos, matando, estuprando, torturando e destruindo carreiras.  Além de sanguinário, o governo militar conseguiu ser corrupto e incompetente, afundou o país na maior crise econômica e abandonou os pobres na ignorância e na miséria absoluta. No fim, não sabia mais o que fazer com essa merda toda que criou, com a inflação estratosférica, o povo querendo eleições diretas, uma confusão dos diabos. Saiu pela porta dos fundos. Ainda bem na foto, fazendo a “transição democrática”. Todo mundo com seus soldos, aposentadorias, conta em banco na Suíça, sem responder por seus crimes, uma beleza! Todo mundo anistiado. Anistia AMPLA, GERAL e IRRESTRITA. Coisa linda. Pluft! Foi pura mágica. Pagamos um preço muito alto pela democracia: a impunidade. A ditadura militar sumiu e ninguém mais falou nela. Tudo resolvido. Encubou, virou peste contida, monstro solto com focinheira. A sociedade que apoiou o golpe fingiu-se de morta e não sabia de nada. Ninguém sabia de nada. Vida que segue.
     Aí a lembrança chegou ao poder. Num determinado momento alguém bateu a cabeça na parede e a memória começou a voltar. Começou a pipocar as Comissões da Verdade. A imprensa golpista teve um surto de amnésia ao contrário e liberou seu torpe arquivo digital. Um cemitério clandestino ali, um relato de ex-preso político acolá, culminando com um torturador que, durante 29 anos ficou calado, agora vem contar que fez, aconteceu, recebeu ordens, torturou, esquartejou, enterrou, desenterrou, que era muito bom nisso e que não se arrepende de nada. Nadinha. Faz sentido. Por que ele iria se arrepender? Ele não tem motivo algum para se arrepender. É um cidadão livre, eleitor, aposentado. Muito bem aposentado por sinal. Serviu ao seu país de acordo com o que o seu país esperava dele nos últimos 50 anos. Pagou impostos, deu bom-dia, boa-tarde e boa-noite para o porteiro e, provavelmente, levanta a tampa da privada para mijar. Se o seu país tem algo contra ele por que o tratou como herói durante toda sua vida?
         Voltando ao tema de hoje. A nossa ditadura militar foi sólida, líquida ou gasosa? Se considerarmos como premissa o diamante pescado no Manifesto Comunista, onde “Tudo o que era sólido se desmancha no ar”. Já temos um suspeito.  A nossa ditadura aparentemente desmanchou-se no ar, logo era sólida. Mas quem atentar para o conteúdo da obra de Karl Marx perceberá que essa destruição ocorreria pela ação do povo, então viraria pó. Mas como a nossa ditadura não caiu, saiu porque quis, não deixou pó para nossa histórica vitória, estamos descartando a teoria do sólido.
       Foi durante a natação que tentei desenvolver a teoria de que a nossa ditadura foi líquida. A ditadura preencheu todos os espaços disponíveis, sufocava quem não respirava direito e não se movimentava conforme a maioria. Infiltrava-se e mudava de cor quando queria. Tinha o silêncio como aliado e a tormenta como arma estratégica. Não. O que não podemos agarrar com as mãos é livre. Se o líquido é livre, a ditadura não é líquida.

         Resta-nos o gás. Mortal, invisível, pestilento, dissimulado, silencioso e covarde. Um peido inesquecível.  

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