Coragem, dezembro


         Caixinhas, comprinhas, lembrancinhas, íntimos esquecimentos; vinhas e rinhas de Natal, não há perdão. Impossível traduzir todo o seu amor em objetos horrorosos.
         Forcas bipolares travestidas de guirlandas seduzem inocentes décimos terceiros salários. Papai Noel se multiplica em varandas envidraçadas. Bizarros arranjos penduram o velho barbudo vermelho entre luzes e pedidos de revanche, a memória escorre nos umbrais.  Ambulâncias urgem enquanto shopping centers lotados de calos e dívidas futuras piscam sedutores. Pisca-piscas incendiários, presépios decorados com alienígenas fluorescentes em miniatura: nada a declarar por suas santidades. O povo quer mais. Dingobel, dingobel, acabou o papel.  Hoje vai bater 40 graus. Vai cair o maior toró. Não faz mal, não faz mal, limpa com jornal. Sensação térmica de 46 graus, e olha que não chegou nem o verão.  Esqueceram o vestilador ligado, incêndio num sobrado no centro do Rio. “Rio, cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta luz.” Libera a gravata, o terno e o martelo.
Amigo oculto, inimigo íntimo, festa de fim de ano, dinheiro curto. Foda-se, crediário em 12 x sem juros. Não paga. Depois de 2 anos negocia para pagar ¼ só para limpar o nome e arranjar outra dívida. Todo ano é a mesma merda. Peru, chester, galinha, frango, codorna, ovo cozido não pode faltar na farofa. Passas pretas, passas amarelas e aquelas outras frutas secas murchas, dignas de nojentos adjetivos beijando bolores. Agora ninguém me convida pra ceia.
Muita imaginação para fazer  o panettone comestível. A amiga no metrô ensina: uma camada de sorvete, outra de panettone, outra de creme de leite. Freezer. Depois da bebedeira todos amam.
Durante o ano todo ninguém come à meia-noite, mas ceiam no Natal e Ano Novo, peru, pernil de porco, baicon, panettone, chocottone, diarreittone . No dia seguinte dá três tapas na cara para se convencer que valeu apena, mete o pé na porta da farmácia e ataca  antigases; antiácido, socorro, meu fígado sumiu!. E pros embutes naturebas: chá de folha de goiaba, boldo, cidreira, erva doce... ai, ai, ai que peninha. Ok? Tudo bem? Hora do enterro dos ossos. Você não pode faltar.
Dieta oito couves e nove grãos, vida nova, muita água. Só pode começar no primeiro dia do ano, viu? Até lá tá tudo liberado. Fez a lista? Comprou agenda? Limpou o “face” de gente do mal? Visitou a tia? Doou suas extravagâncias? Então pode entrar. Um novo ser brota de dentro de cada humanoide. Seremos 14 bilhões à meia-noite. O ser velho sucumbirá no ácido do perdão no primeiro minuto do novo ano e voltaremos a ser 7 bilhões purificados.
A obrigação de ser feliz em dezembro é o empurrão que falta aos suicidas. Graças alcançadas. Para os incompetentes, meias embrulhadas em papel natalino com laço de fita vermelha. Merecem. Melhor sorte no próximo ano.
Engarrafamento, lei seca, chuva, mijo, fedentina, barulho, gente feia. Vamos ver os fogos?  De novo? Claro! Por que não? Preguiça. Te beijo. É pouco. Continuo tentado. Fofo. Gostosa.

Pula sete ondinhas molhando a beirada do vestido. Sorri e seu homem ama a cena. Champanhe e taças de vidro aquecidas por guardanapos roubados, saudades do filho. Flores para Iemanjá; já-já a Lua se oferecerá às estrelas e nenhum gelo se manterá integro. Areia nos pés recitam poemas malditos e só ele escuta e toca e vê os fogos pipocando dela; só. Sabe que estaria morta sem ele e oferece o único tesouro que tem: os olhos. Tira a nossa foto, assim você arrancou a minha cabeça, minha flor, tira outra, agora assim, vem cá. Viu a Lua? É para você, sempre.

Operários sujos de tinta e massa corrida comem  PF requentado no boteco. Comentam animadamente as dramáticas esperanças de seus times no campeonato brasileiro.

        


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