Pipocas no asfalto



Paulinho nasceu numa família como qualquer outra. O pai intelectual silencioso, a mãe orgulhosa da prole, o irmão mais velho lindo, estudioso, obediente. A irmã caçula, sempre doente e boba, recebia a atenção de todos; inofensiva, uma benção. Já o magro, pálido e ágil Paulinho honrava a fama de filho do meio, era o capeta encarnado. Frequentador eventual da escola mantinha ano após ano o boletim regularmente vermelho, os cadernos desbeiçados, rasurados e sem datas. Saía de casa com a mochila nas costas, uniforme engomado, cabelo penteado e sapatos dignos para voltar totalmente possuído pelas peladas de rua. Joelho esfolado, meias rasgadas, chiclete no cabelo, boca suja de paçoca e, no lugar do dever de casa, a bolsa cheia de bolas de gude e figurinhas conquistadas. A mãe, mulher espiritualizada, resignava-se aos desígnios de Deus, mais cedo ou mais tarde seu moleque tinhoso haveria de servir para alguma coisa.

Numa intensa tarde Paulinho atravessou a rua destrambelhado atrás da bola fugidia. Vinha ladeira abaixo a carrocinha de pipoca e pegou bem no meio das costas do garoto arremessando-o de testa na calçada. Na mesma hora cresceu um galo gigante e Paulinho só lembra das pipocas espalhadas no asfalto, antes de apagar geral. Uma semana de cabeça enfaixada, canja de galinha e repouso foi o suficiente para a vida voltar ao normal. Ou quase.

Passou a dormir mal, acordava suado de pesadelos com pipocas gigantes sufocando-o. Não comeu mais pipocas, nem paçocas, nem jujubas. Enjoou. A mãe surpreendia o moleque meditabundo olhando as estrelas com as mãos no queixo. Do acidente só ficara uma ligeira elevação entre as sobrancelhas, mas sua intuição materna latejava de que algo fora desse mundo acometera seu filho. O pai, homem afeito ao mundo das energias invisíveis, comentou com a mulher ter lido que algumas pessoas têm alterado o chakra frontal depois de uma pancada. Passaram a observá-lo melhor.

Um dia receberam a visita da nova vizinha. Dona Tereza era grande e de fala santa. Paulinho entrou na sala, olhou nos olhos da mulher, tapou o nariz e saiu correndo. A mãe foi atrás e o garoto alegou não suportar o cheiro do perfume da mulher. Dias depois Dona Tereza matou o marido despejando óleo quente com um funil no ouvido do pobre enquanto dormia. Pronto, foi o suficiente para a mãe entender as intenções do Criador. Seu filho, o anjo caído, tornara-se um médium acidental e sentira o cheiro da morte na áurea escurecida da vizinha.

Daí foi só bagaceira a vida de Paulinho. Não tinha tempo mais para brincar na rua. Era uma romaria de mulher traída, velho com espinhela arriada, criança estropiada querendo receber as graças do menino do terceiro olho; não o cego e sim o que tudo vê. A mãe também não dava trégua, e tome banho de descarrego, catinga de incenso pela casa o dia todo, benzedura com espada-de-São-Jorge e arruda para espantar o Coisa-Ruim e missa aos domingos, comungando e confessando. Era para atacar o mal por todos os lados com artilharia pesada. E Paulinho ficando fraco, só vivia espirrando, tossindo, os olhos fundos de quem suga as dores para o fundo do poço de sua alma para salvar o próximo. As mãos geladas causavam tremores de clarividência nos demais mortais, ao ponto do menino desmaiar.

Na escola, sempre cochilando na mesa devido ao intenso trabalho na missão divina combinado com as pipocas gigantes que continuavam sacaneando sua noite, chamou a atenção da professora que encaminhou o combalido menino ao ambulatório. Devidamente examinado, Paulinho voltou para casa com um bilhete do médico da escola para os pais:

“Caros pais,

Paulinho apresenta quadro de alergia respiratória e pressão baixa que inspira cuidados. Sugiro levá-lo o mais breve possível a um alergista para tratamento.”

Em um mês toda a mediunidade de Paulinho sumiu engolida pelas pipocas alienígenas, prontamente substituída pela pelada, bola de gude, figurinhas, bafo-bafo, queimado, pular carniça, matar aula...

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