Minhoca, Minhoca, me dá uma beijoca...

Beto tem uma tatuagem em caixa alta no antebraço direito escrito Luana, amor eterno. Resultado de um amor meteórico desembestado na adolescência. Antes da declaração cicatrizar, Beto já recebera um pé-na-bunda de Luana, via torpedo tipo “Você é um cara muito legal...o problema é comigo...”. Com o tempo Beto percebeu que o problema era dele, na carne e em letras garrafais.
Para a primeira garota que perguntou quem era Luana, Beto, inspirado pelos olhos negros da morena emanando volúpia e ciúmes, saiu-se com essa bizarrice: “É o nome da minha falecida filha. Não gosto de falar no assunto. Dói muito.” Brilhante. Além de ninguém perguntar mais nada ainda ganhava pontos extras como homem fiel e romântico.
Com o tempo foi conhecendo mulheres mais esclarecidas onde a maturidade ousa maiores questionamentos: “Morreu como? Com que idade? Como ela era? Você ainda vê a mãe?” Diante das exigências o homem viu-se criando o nascimento, vida e morte da própria filha que nunca teve. Luana nasceu linda e forte de um relacionamento passageiro. Aos dois anos foi diagnosticada com leucemia. Alegre e inteligente resistiu um ano até morrer em seus braços. A mãe, uma devassa, nunca visitou a filha. Ele cuidou da pequena até o fim.
Passou a sonhar todas as noites com Luana gargalhando como só os bebês sabem fazer diante de um móbile colorido, cantando “Minhoca, minhoca, me dá uma beijoca...”, usando o troninho pela primeira vez, engatinhando atrás da bola amarela, babando com o nascimento dos dentes, se lambuzando de sorvete e abraçando o pescoço do pai com a força dos inocentes.
Um vazio imenso preenchia os dias de Beto. Não via a hora de chegar em casa, dormir e encontrar Luana, cantar uma música de ninar aconchegando os seus cachinhos entre os dedos enquanto a pequena repousava as horas sublimes em seus dorso. Mesmo quando ninguém perguntava, ele não conseguia falar de outro assunto a não ser a amada perda. Criou gráfico com a linha do tempo da curta vida de Luana. Confeccionou um falso atestado de óbito, escolheu fotos na internet de um bebê de cachinhos acobreados e olhos vivos como uma noite de lua cheia, mandou fazer um pôster e pendurou na sala. Não podia ver uma criança sem que o coração rachasse e as lágrimas brotassem a qualquer hora em qualquer lugar.
Quando Beto removeu a tatuagem os sonhos o abandonaram definitivamente. Aprendera a dor real da perda.

Comentários

Unknown disse…
Sonhar é viver...nunca havia pensado nisso numa forma tão original...parabéns!
Anônimo disse…
princípio básico da literatura, viajar, sonhar, viver no mundo da imaginação. bj. Sammy
Anônimo disse…
Gostei... Muito bacana este texto.
Abraço, Jth.
Anônimo disse…
Seria arriscado dizer que o "princípio básico da literatura" como Sammy quer é "viajar, sonhar, viver no mundo da imaginação". Não! Porque viajar, sonhar e viver no mundo da imaginação são fulcros da realidade que se realiza pensando e sentindo a si próprio. Pelo menos assim a vida não passou em branco. Ainda há, esperamos, gavetas com desenhos da infância.

Ivo de souza

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