Uma luva vermelha em Porto Alegre


Cesário segue pela Rua dos Andradas pensando se o frio encolhe ou desperta os neurônios. Sabe que o ar inóspito empurra para debaixo das cobertas. Haja gana para comer as esquinas, placas e meios-fios gelados “à la minuta”. Anda por calçadões apinhados e vidros estilhaçados de agências bancárias. A noite anterior fora a mais longa dos últimos trinta anos e nunca estivera tão acordada. Chegaria a tempo?

Na beira do Guaíba senta num banquinho improvisado vendo o povo encasacado tomando chimarrão e jogando conversa na correnteza. A garrafa térmica, o pote de erva e a cuia, que nos trópicos seria um trambolho, harmonizam-se perfeitamente entre tantos panos. É um povo bem estranho, sai de casa com sete graus molhando os ossos, todo embrulhado em várias camadas de roupas. Lá pelas tantas, com o sol subindo, vai retirando as cascas aos poucos, feito cebola. Vê-se na rua um monte de gente-varal, com casaco, suéter, cachecol, luva e gorro pendurados nos braços. Ninguém reclama, sabem que quando o sol baixar as cascas serão repostas com prazer.

Come-se muito e por preço justo. Bebe-se “vinho da casa” honesto e as cervejas são especiais. As cachaças, embora não tão adoradas quanto o vinho, são primorosas e o povo, ah, o povo do Rio Grande é belo e se movimenta como um índio europeu. Agilmente elegantes e majestosamente silenciosos. Das conversas, ao ouvido estrangeiro, tem-se a rápida impressão que estão a questionar tudo. Parece que um balaio de interrogações foi despejado nos diálogos e ficaram ali substituindo pontos e vírgulas. Puro charme. Teria chegado a tempo?

Observa uma loirinha de cabelos lambidos destoando da paisagem, andando apressada a surrar a calçada com os saltos da bota. Do varal lotado escorrega uma luva de lã vermelha. Quem usaria luvas vermelhas em sã consciência? Cesário corre a colher aquela chance única antes que outro ousasse. Precisou correr para alcança-la. Toca-lhe o ombro. Ela estanca com um salto para o lado oposto. Os olhos suados tentam processar tamanha insolência. Vendo a luva vermelha na mão de Cesário sorri a cor simultânea. Desce a cortina dos olhos agradecidos. Um pudor longínquo arrasta a mão nua pelo cachecol para cobrir o decote. Dentre seus dois incisivos centrais um gentil espaço deixa escapar a revelação: Aquela mulher fará seu coração vago atracar para sempre entre os pneus molhados do cais. Tomará intermináveis taças de vinho em sua companhia. Deixará que povoe seus sonhos, seu banheiro, seu controle remoto. Baixará a tampa da privada regularmente só para que ela sente sem olhar, corredia, falando o tempo todo, puxando o fio do papel higiênico além do necessário, displicente como seus brincos azuis. Manterá sempre a porta sem tranca interna para que ela entre esbaforida jogando aquele varal de roupa no sofá. No sofá, entre um inverno e outro, faremos nossos planos, contas e filhos. Envelheceremos juntos sentados na praça observando os pássaros voando e cagando. E quando a terra chamar iremos abraçados. Chegou a tempo?

Antes que aterrissasse o amor de sua vida escondera-se nos tons do pôr-do-sol no Gasômetro; um espetáculo a parte, injustamente ninguém aplaude.

Ainda dormente guarda os dedos covardes nos bolsos a procura da chave traíra, a que não pode ser esquecida nunca ou ficará trancado do lado de fora. O bafo quente do corredor conforta enquanto o sino grita o fim do dia. Sente o silêncio como um perfume raro forjado para narinas treinadas.

Comentários

Perfeito! Lindo! Tenho um minúsculo comentário que farei pessoalmente na nossa próxima reunião. Nada que desmereça os elogios sinceros e que diminua a admiração desta fã incondicional.
Anônimo disse…
Querida Catá,
Você não errou absolutamente nada.
Nada contra também palavrões ou palavras chulas. Há textos que pedem.
Mas queria observar que o "cagando" aí debaixo não combinou com o tom completamente poético de todo o texto. Mas isso sou eu, Sylvia, que acho. Não quer dizer que não está bom.
Como saltou aos meus olhos, e você gosta que a gente dê opiniões sinceras, achei que devia mostrar o que senti.
Sylvia Regina Marin
Catarina Cunha disse…
Grata...mas voo e cagada combinam perfeitamente com a velhice.
Unknown disse…
Vocês são de outro mundo...
... só pra pedir que você tenha muito dinheiro e motivos pra fazer outras impressões dessas...
Você tem uma visão singular de coisas, de pessoas, de lugares... É tão gostoso ler a sua versão da vida!
Catarina Cunha disse…
Só lembrando que as divagações românticas são de um homem (sensível, ogro, escatológico) e não minhas.
www.alinhavandopalavras.blogspot.com disse…
Amei amiga como sempre. Parabéns pela BIENAL
Beijos.
Dd
Ida Vicenzia disse…
Que saudade doida (e doída) me deu daquela gente maluca, Catarina! E que belo conto! Auguri! (falar nisso, lá tá cheio de italiano, índio, alemão, espanhol, português...) e alguns negros. Todos bonitos, né messss?
bj bj e bons contos como esse!
Ida
Ida Vicenzia disse…
Assino embaixo o comentário da Sylvia...
Ida
Catarina Cunha disse…
Lá tá cheio de gente colorida e pulsante. Coisa de louco!

Postagens mais visitadas deste blog

Porque o inferno se perdeu

Todo o meu pedaço