Música de elevador

     
       Feliz Ano Novo com a saga de Maria do Rosário. Escrevi este conto para os que continuam na luta.





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         Arrumou a trouxa envolta em três sacos pretos de lixo. Equilibrou na cabeça e partiu. Precisava chegar à estação de trem antes que a tempestade desenhada no céu virasse realidade na Terra. Acelerou o passo. Acuda minha Santa Edwiges, valei-me nesta hora. Os petardos de água batiam descompassados no plástico fazendo plim-plong, plim-plong. A rua encheu mais rápido do que as pernas alcançavam. Um pé de água deu-lhe uma rasteira. Enfiou os braços entre os cordões da trouxa antes de cair na corrente. Perdeu os chinelos, fechou os olhos e deixou o corpo ser levado. Lembrou-se do caixote que levou ainda menina na praia de Copacabana. Era só esperar a onda estourar na praia, ajeitar o biquíni, tirar a areia dos fundilhos e pronto. Você não está na praia, sua besta. Está sendo arrastada para uma vala qualquer cheia de lama e lixo. Valei-me minha Santa, agora!
        A prece ouvida encalhou numa curva de entulho. Pega a corda, tia! Pega a corda! Tentou alcançar o laço com uma das mãos para não soltar a trouxa. Não conseguiu. Colocou a trouxa entre as pernas e lançou-se para sua última cruzada. Passou o laço no corpo, voltou a abraçar a trouxa e gritou para puxar. No caminho algo duro rasgou-lhe a perna do quadril ao joelho. Na margem beijou seus salvadores, pediu para Deus protege-los  e deixou-se levar para o hospital de Bonsucesso. O braço enrugado segurando a trouxa sobre a barriga. Enfaixaram a perna, tiraram pressão, escutaram o peito, perguntaram seu nome, que dia é hoje e o endereço de casa. Maria do Rosário Oliveira das Neves, Rua Tucurupimbá, número 21. Hoje é quarta-feira, dia de entregar a roupa da Dona Célia. Boa tia! A senhora vai ficar bem logo-logo. Chegamos. O rapaz dos bombeiros arrumou meus cabelos com o indicador e com uma piscadela charmosa sumiu pelo corredor. Fiquei ali vendo o ir e vir do hospital. Nunca fui mulher de pedir favor ou ficar reclamando atenção. Sou muito forte, tenho genética boa. Não dou asas para a dor. Aguento. Mando minha cabeça não dr atenção para frescura. Funciona. De uma fresta vi o sol subir para o meio-dia secar as ruas. Pensou no terninho da patroa e nas camisas sociais do patrão. Deus queira que os plásticos tenham resistido. Vou chegar atrasada. Com sorte chego sem ninguém ver pela entrada de serviço, tomo um banho e já começo a passar a roupa como se nada tivesse acontecido.
            Maria do Rosário! Maria do Rosário! Sou eu, aqui, aqui em baixo da trouxa. Costuraram a perna, deram injeção e mandaram embora. O trem, o metrô, o ônibus, tudo funcionando, uma benção. Chegou na Barra às três da tarde. Nunca soube o porquê daquela mulher tão fina não ter uma máquina de lavar. Dizia que não gostava do barulho. Vai entender? Cobro mais, é claro. Quando entrei a madame estava no quarto fechado. A cozinheira diz que ela tem enxaqueca e nas crises toma uns florais e não dá as caras. Sorte. Fui direto para o banheirinho arrastando a perna. Tomei banho perneta, lavei e sequei a trouxa. Perfeito. A perna latejava, mas o ferro quente soltava um calor tranquilo. Passou as golas primeiro, depois o meio e as laterais com cuidado para não estragar os botões. Arrumou tudo no quarto de roupas.
            Penteou os cabelos com creme, passou batom e dispensou o rímel. Gostou do que viu no espelho. Sorriu conivente. Pegou o dinheiro separado para ela sobre a mesa da cozinha e se dirigiu para a porta. Sentiu uma cutucada no ombro. Dona Célia acordara com a cara simpaticamente inchada besuntada de creme de cheiro estranho. Era uma boa moça, sem noção, mas uma boa moça.
- Nossa, Rosê, você está um caco, heim?
- Estou sim, Dona Célia.
- Chegando tarde, saindo cedo, que farra, heim? Tira essa preguiça do corpo e vai à luta, menina!
- Sim senhora.
            O elevador cantava baixinho uma música de elevador. Rosário já conhecia e assobiou pensando nos planos para o Ano Novo.


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