A espanhola que sobreviveu à gripe
Decidiram não
ter filhos para viver exclusivamente um para o outro. Os primeiros dez meses de
casamento de Lisa e Beto foram de lua de mel, os próximos de puro fel. A
divisória entre o céu e o inferno não passou nem pela alfândega, não precisou
de passaporte, muito menos de visto ou carimbo consular. Um ding-dong na
campainha foi o suficiente. Lisa abriu a
porta e lá estava a sogra de mala, gaiola de papagaio, cachimbo e cuia de
chimarrão. Não, não era gaúcha, adquirira o simpático hábito com o falecido
marido. Embora não largasse a cuia e a garrafa térmica era imigrante espanhola.
Chegara num navio fétido com o irmão, o pai e a mãe. A mãe morreu no parto com
o terceiro filho nos campos de tomate no interior de São Paulo, o pai e o irmão
sucumbiram à gripe espanhola, daí passou a sofrer dos nervos. Casou com um
italiano surdo que não se incomodava com o fato dela falar sozinha, reclamar e
gritar o dia todo e à noite também; o que não impediu que fizessem três filhos.
Com a viuvez e a velhice pirou de vez. As filhas mais velhas sumiram no mundo o
mais longe possível deixando ao caçula a missão de cuidar da espanhola doida,
agora convertida em filha adotiva definitiva.
Beto tentou de
tudo. Dinheiro não era problema. Ela não queria morar na melhor casa de repouso
de São Paulo. Também recusava a própria casa com vários empregados. Queria
porque queria morar no apartamento do filho e não se fala mais nisso se não ela
ficava sem ar. Embora Dona Elvétira tivesse 87 anos, quase cega, osteoporose,
lordose, escoliose, cifose e todas as “oses” possíveis e imagináveis era mais
ágil do que uma mosca quando Lisa e Beto se recolhiam para dar uma namoradinha.
Logo ela conseguia levantar da cama, cruzar o corredor, bater na porta deles
passando mal, quase morrendo. Parecia que a desgraçada adivinhava, devia ir
pelo faro. O pior era que bastava os dois tirarem o carro da garagem, antes de
chegar ao hospital, para toda a dor terrível passar. Provavelmente pela
milagrosa aragem da Avenida Paulista.
No café da
manhã era um amor de pessoa, beijoqueira, alisadora, grudenta até. Agradecida a
Deus pela sorte de ter um filho tão bom e uma nora tão generosa. No almoço
confidenciava com a nora que não sabia como ela aquentava um homem molenga como
o filho dela. Puxou ao pai. A nora, mesmo que feiosinha, era nova ainda, podia
encontrar coisa melhor.
Depois do
jantar alugava o filho para uma caminhada pelo quarteirão por ordem médica.
Aproveitava para informar que Rodolfo, o papagaio, observou que Lisa só vive no
telefone às gargalhadas com não se sabe quem. Também, não tem o que fazer, né?
Você trabalha tanto, não é meu filho? Ela anda tão tensa, precisando se
divertir. Você tem cumprido suas obrigações maritais? Quem sabe ela pare de me
dar tantos beliscões?
Quando Lisa
voltava do trabalho a empregada contava que a velha passava a tarde gritando na
janela pedindo socorro, que estava sendo torturada, roubada, beliscada. O casal
acabou tendo problemas com o síndico, os vizinhos e por fim com o Ministério
Público.
O martírio de
Lisa e Beto se arrasta por dez anos, fazendo com que sua saga envergonhe a obra
de Dante. E quando a saúde de Dona Elvétira parece melhor do que nunca, uma
bela tarde de rotina de escândalo na janela, a velha cai adoentada. No leito de
morte, chiando baixinho com a mão esquerda esquálida entre as de Lisa, a velha
com os olhos marejados observa a paciente e abnegada nora. Beto em pé na porta
chora. Elvétira levanta suavemente a mão trêmula até o rosto de Lisa que se
aproxima. A moribunda arfa no ouvido da nora:
_ Ele nunca
vai ser teu, sua vagabunda.
Lisa acaricia
os cabelos da sogra e responde no único ouvido que funciona:
_ Ele sempre
te odiou, velha escrota. Vou te enterrar com aquele papagaio fofoqueiro entre os
teus peitos e o cachimbo fedorento enfiado no teu rabo. A gente se vê no
inferno.
Morre. Beto se
aproxima e fecha seus olhos. Pergunta para Lisa quais foram as últimas palavras
de sua mãe. Lisa pisca duplamente para si mesma. Ela pediu perdão e disse que
te amava muito. Beto abraça o corpo e soluça. Pobre mamãe, no fundo era uma mãe
calorosa. Lisa concorda. Sim, bem no fundo.
Comentários
Me manda um resumo de pipoca no asfalto junto com a capa que vou divulgar em meu blog.
Grande beijo!
Marlon Albuquerqur