Antes do céu clarear, Tião beija a mulher e os filhos como se para sempre.  O caminho até a estação de trem não carece de luz, os pés cegos nunca erraram o caminho. Argamassa com tijolo sobrepõe-se às horas lentas de poeira. Os músculos desabam com o sol. Tião sobe no alto do esqueleto, senta na beira balançando os pés no ar enquanto as formiguinhas lá embaixo urgem. Sorri com o privilégio do pôr-do-sol. Pensa na mulher grávida lavando roupa no tanque e os filhos brincando na viela fétida; sem pôr-do-sol. Abre a garrafa de cachaça, oferta o “gole do Santo” ao vento e vira a danada em um único fôlego. As nuvens correm para a esquerda, enquanto a lua sobe as escadas pelos degraus iluminados das estrelas. Tião vê poesia em seus pensamentos e toda a dor cede. Dança na beirada do abismo como nunca antes. Gargalha sem medo para o céu e grita:

         - Eu estou aqui!

         A manchete do jornal mostrava o enorme engarrafamento gerado pelo corpo de um homem não identificado: “Morreu na contramão atrapalhando o trânsito”. 
        

         (Inspirado na letra de “Construção”, de Chico Buarque)

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