Todo o meu pedaço
O amor é inteiro ou apenas um pedaço? Meu conto "Todo o meu pedaço" ficou orgulhosamente em 4º lugar no desafio FOLCLORE BRASILEIRO do site Entre Contos. Leia o meu e os outros contos. Seu dia ficará mais belo e completo: https://entrecontos.com/2017/03/10/todo-o-meu-pedaco-calango/comment-page-1/#comment-60228
Ainda com o
torpor da vigilância noturna, Etelvino lavou o sorriso pensando no corpo morno
de Melissa entre os lençóis sonolentos. Tirou o uniforme e devolveu a arma da
firma, nunca gostou de arma de fogo, carregava por obrigação. Mas Benedita, a
companheira das solitárias rondas noturnas, se mantinha junto à coxa esquerda.
A peixeira descansava na curtida bainha de couro desde os tempos de menino nos
canaviais. Pegou gosto pelo ornamento que lhe equilibrava o gingado. A
madrugada recifense, de escuridão escaldante, jogou o homem dentro de um
ônibus. Não faria o longo percurso a pé, como de costume, guardaria um pouco de
energia para acordar a mulher já com o circo armado. Girou a chave do lar
cuspindo as botas e arrancando a camisa.
Todo o meu
pedaço ( Catarina Cunha)

Os gemidos lhe
chegaram aos ouvidos antes da consciência. Meteu o pé na porta do quarto.
Primeiro uma tapa de mão aberta na cara da desonrada, enquanto o amante se embolava
para debaixo da cama. O vigilante não teve dúvidas, covarde se despacha na
peixeira. E tome hora extra para Benedita. A danada acordou da ferrugem e caiu cortando
o infeliz em postas irregulares. Começando pela parte deslembrada de vergonha
aparecendo ao pé da cama. Pegou no embalo depois da primeira peixeirada braço, beiço,
perna, orelha, bagos, miúdos para todo lado. Uma bagaceira de ver e um rebuliço
nas tripas de contar. Quando Etelvino terminou o desmantelo, arfando feito um
porco possuído, não tinha uma junta amarrada no corpo do miserando. Teve a
sensação de que ele próprio suava a inhaca da sangueira.
A pancada nas
costas pegou o homem desprevenido, mas Benedita atenta se virou rapidamente. Uma
joelhada lhe amoleceu as partes machas, soltando a arma e arriando de vez os
quartos no chão. Enquanto agonizava feito caramujo no fogo espremeu os olhos
para melhor focar o agressor. Um arrepio, nascido no feofó subindo pela
espinhela até o cocuruto, fez do valente um menino. Até então estava para nascer homem que lhe
fizesse borrar os fundilhos, mas pedaço de homem é coisa de outro mundo. Vazou
nos cueiros diante de uma perna sangrenta e cabeluda pulando feito cabrito na
sua frente. Fechou os olhos rezando o
Pai Nosso com Ave Maria e Crê em Deus Padre para despachar a assombração. Um
chute na queixada soltou os dentes e desmontou as ventas provando que a reza
era fraca. Com o calcanhar o Perna Cabeluda
afundou o confuso crânio de Etelvino.
A timidez do
sol recém-nascido entrando pela janela fez Perna Cabeluda lançar um último
olhar para a amante pelada no canto do quarto. Nunca se esqueceria de seu olhar
aterrorizado. Saltou pela janela aos pulos sumindo no meio do mato.
A amante
jurava inocência, aos prantos, acusando o marido e a perna sumida do amante
pela chacina. O causo foi se espalhando feito chuchu na cerca pelas paragens
pernambucanas sem nenhum acanhamento. De prosa em prosa foi se agigantando o
terror do Perna Cabeluda que atacava os cornos na madrugada. Os homens se
olhavam constantemente a procura de alguma protuberância na cabeça. Chegavam
mais cedo em casa, faziam tarefas domésticas e procuravam cansar as esposas
para não haver carência e nem dar motivo para visita do membro ensandecido.
Tonho, o
barbeiro boa gente, achava graça no medo
abestalhado do povo. Onde já se viu ter medo de perna pulando? Sabia que sua
Quitéria era meio assanhada, mas uma belezura que o tratava como um rei. Acreditava
no dizer do povo: “ Melhor ser feliz comendo um filé com os amigos do que
amargar um sebo sozinho”. Naquela noite
abafada fechou a barbearia mais tarde, cantarolava com as mãos nos bolsos quando
sentiu uma brisa lamber suas orelhas.
Olhou para trás e uma sombra se mexia perto da esquina. Seria uma
criança perdida a essa hora da noite? Aproximou-se o suficiente para a coisa
lhe dar uma rasteira que deitou o barbeiro no chão. Quando acordou, dias depois
no hospital, era um homem convertido pelo medo. Com a bíblia nos peitos relatou a hedionda
imagem de uma perna com garras enormes lutando capoeira com um olho lombreiro, pestanudo
como um espanador da lua. Quitéria não sabia que o Perna Cabeluda atacava
também corno manso e achou por bem nunca mais se assanhar para outro homem, não
arriscando assim perder o seu Tonho.
Até então as
esposas estavam gostando do bom comportamento dos maridos, uns cordeirinhos. Entretanto
Sinhá Dona, recatada do lar de família abastada, sabia que o Sinhozinho vivia
se metendo nas redes das criadinhas arrancando cabaço; mas nada temia, era uma
boa cristã e não zanzava pelas ruas depois do cair da noite. Enquanto ela dormia,
o marido se esbaldava nos braços das quengas. Acordou sem as cobertas e levantou para fechar
a aragem fria da janela escancarada. As
garras do chulezento grudaram na testa de Sinhazinha rasgando a máscara até o
queixo. Depois de um bote certeiro na
veia do pescoço voou zunindo noite adentro.
O corpo de Sinhá ficou emborcado na janela em posição indigna mostrando
as suas partes vexadas.
Depois do
ocorrido, todas as cidades do nordeste, vizinhas de onde Perna Cabeluda pernoitava, declararam
estado de sítio voluntário. Ao cair da noite portas e janelas se cerravam. À
boca miúda, para o Coisa Ruim não escutar, diziam que o Perna procurava um
sapato para chamar de seu , outros viam muita ousadia para tão pouco e
apostavam que buscava vingança por seu infortúnio. Na dúvida, deixavam um pé de
sapato de homem na porta de casa como oferenda.
Melissa,
vestida de luto fechado, achou digno assumir a responsabilidade pelos feitos da
perna perdida e dar fim à desgraça. Lugar de perna morta é junto ao corpo, sete
palmos abaixo da terra. Juntou seu equipamento na bolsinha florida e partiu
resoluta para o centro da praça. Escolheu a meia-noite que era hora boa para
assombração. Sentou e esperou. Não deu outra. Atrás de um cajueiro
reconheceu a unha encravada do dedão do amante espreitando. Chamou com
carinho:
¾
Vem cá meu forte prum chamego, tô aqui
inteirinha procê.
O Perna fez
que ia e ficava, olhou comprido com o joelho dobrado já se afrouxando. Melissa
continuou a fala macia prometendo o céu. Perna Cabeluda se arrepiou todo se
jogando nos braços da amada cafungando o ar de flor. A mulher abraçou o membro
amado com saudosa tristeza. Abriu o zíper da bolsinha com uma mão e com a outra
foi fazendo cafuné entre os dedos do pé, passou a pasta quente em toda a perna
com massagens enlouquecedoras. O cabeludo babava de prazer quando Melissa
fechou a boca em traço para não gritar. Puxou a cera fria arrancando todos os
pelos de uma vez só. O depilado arregalou o olho de dor, da cera e da traição
da amada. Ela chorava abraçada ao pedaço desesperado de amor. Ele foi perdendo
as forças até deitar o pé entre os seios da malvada.
Melissa entrou
no cemitério com o véu de viúva recente cobrindo-lhe as lágrimas, nos braços
carregava o melhor pedaço de sua vida para a eternidade.
Comentários
Ficou muito bom.
Adorei, matei saudades e me diverti com a leitura.
Bjo.
Sammy