Amor, enfim


Aos 86 anos ainda sente no vento o perfume do amado. Fala dos gostos do homem e, feliz, anuncia os 57 anos de casada. Que homem maravilhoso! Declara. Lembra da mão máscula e gentil segurando-lhe a nuca, deitando-a levemente antes das núpcias. As flores de jasmim roubadas e arrumadas na lapela. Os beijos, os partos, a casa, as festas, a jura eterna e a luz da vela. Vê o sorriso dele no filho e a determinação na filha. Cultiva esse amor todos os minutos em que a natureza lhe reserva de lucidez. Pede um peixe ao molho de camarão como o amado fez há 50 anos naquelas últimas férias de verão. Leva a mão inchada e trêmula aos lábios, acaricia-os como se seus dedos não fossem os próprios a digitar a pele murcha. Olha para o céu e geme baixinho: Estou aqui, amor, me leva...

Comentários

Anônimo disse…
Nos conforta saber pra onde iremos depois da vida, por isso tanto esforço. Ora, gente! Nós vamos pra "gaveta verde" daquele que nos ama.
Querida Catarina,
Nunca havia visto um texto seu tão lírico. Você sempre nos surpreendendo...
Beijos.
A Catarina tem o dom de, com um pequeno texto, como este (e outros mais que constam deste blog) despertar as nossas emoções e as nossas memórias, fazendo-nos olhar para tudo aquilo que sempre está e sempre esteve ali ao nosso lado, mas que nós na cegueira do dia a dia não constatamos, nem paramos para sentir e sobre elas reflectir. Este pequenos texto leva-nos a olhar para todos aqueles que se amando, ao longo de tantos e tantos anos de companheirismo e carinho (e aí está afinal o verdadeiro amor) pela lei da morte se vêem privados do seu par, passando a viver na ânsia do reencontro. Quanta gente por esse mundo fora cumpre esta pena. A minha falecida avó, viúva, sempre dizia ... feliz do que vai primeiro! Porque o segundo, já velho e frágil, passa a viver de saudade na ânsia do reencontro.
Bem haja quem assim tanto ama, tanto amou ...

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