Focinho úmido


Maristela é sozinha. Tem um cachorro cego e aleijado que leva para passear todas as manhãs; no colo. Entre uma visita ao veterinário e uma parada para conversar sobre os últimos resultados dos exames do bichano, Maristela reclama da vida, do portão, do bairro e de qualquer coisa ou humano. Já encontrei muita gente assim. O que me assusta. Não pelo presente e sim pela possibilidade do futuro. A questão é: o que faz com que pessoas saudáveis, inteligentes e cultas, em um momento xis da vida, adquiram uma nuvenzinha negra sobre a cabeça? Como uma mulher amante dos animais, da família e das plantas torna-se um ser tão negativo? Tenho muito medo do outro lado. Talvez por nunca ter tido a consciência do mal. Sempre acreditei que a bondade existe e ninguém é irrecuperável. Romântico, eu sei, mas sou assim.

Contrariando todas as previsões, ao cruzar com o olhar fuzilante de Maristela tenho vontade de abraçá-la, chamar para um chá, conversar por horas, fazer carinho.

Pode ser o receio de um dia – quem sabe? – sofrer amargura tal que meu coração sucumba ao rancor, minha pele resseque à mercê da solidão e meus olhos se tornem tão frios que seria necessário colírio fervente para abrandar a dor.

Temo pela vida do cachorro de Maristela, o último bastião de afeto e sanidade. O fiel, inocente e presente cão. Temo pelo restinho de humanidade que resta a Maristela concentrado num velho focinho úmido.

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