O ano do ovo



         Berta encarou a tradicional lista de ansiedades do novo ano pregada na porta da geladeira:
1.   PARAR DE FUMAR
2.   DETONAR CACARECOS
3.   SER FLEXÍVEL
4.   PERDER CINCO QUILOS
5.    ABANDONAR A INTERNET
6.   NÃO LER MAIS HORÓSCOPO
7.   COLAR TACOS SOLTOS.
O primeiro item há vinte anos bate ponto na lista, conquistou status de líder absoluto dos objetivos.  Cruel e cascudo, humilha Berta todos os anos e sempre volta para tirar onda com a cara dela. Por doze meses exige, cobra, lembra, enche o saco. Não vai mais tolerar toda essa opressão. Está expulso da lista.
O segundo envolve grande operação de administração e logística. Quantas canetas, tesouras, penduricalhos, carregadores de celular, lembrancinhas lindas e inúteis, potes de sorvete, panos de chão, brincos, colares, dicionários, relógios, botões e imãs de geladeira precisamos numa casa? Pensando bem... Todos! Risca logo da lista e não se fala mais nisso.
Berta passou a vida toda sendo chamada de inflexível. Deveria ser mais compreensiva com os racistas, homofóbicos, salvadores de almas, gente sem palavra, malucos de plantão, ladrões, corruptos, estupradores, egoístas, espertos e assassinos; afinal ninguém é irrecuperável e a gente tem de aprender a conviver com a diferença. Não confundir diferença com má índole. Poderia ser menos enjoada com os prolixos, nunca teve paciência com eles. Sente até culpa. Como é? Não vai dar. Tolerância zero para quem só lhe dá zero de retorno. Sai.
Perder cinco quilos devolveria certa dignidade e o direito a voltar a entrar em algumas roupas acanhadas no armário. Dizem, verdade ou gentileza, isso não vem ao caso, que Berta está ótima, mas o espelho discorda. Pensando bem, já faz duas horas de exercício por dia e come sobras de um passarinho. Para perder vai tirar de onde? Vai passar fome? Vai dispensar a cervejinha e o papo mole no bar? Jamais! Pode ir saindo desta lista que não te pertence!
Abandonar a internet poderia economizar tempo, mas para que radicalizar? Vagabundear apenas meia horinha por dia já dá para fofocar, fuçar a vida dos outros, resolver pendências, passar e.mails, ler notícias, fazer pagamentos e pesquisas, encontrar amigos e ainda sobra tempo para relaxar jogando uma partida de mahjong. Objetividade e foco. Risca.
Não ler mais horóscopo. Até hoje Berta não sabe por que todas as manhãs lê as previsões do dia para o seu signo. Ela sabe bem que aquilo é escrito por qualquer pessoa da redação. Se fosse escrito por um astrólogo teria o nome dele. E mesmo assim ela não acredita em previsão por meio algum, sejam búzios, cartas, leitura de mãos ou de nuvens. Até porque o cérebro apaga a informação dois minutos depois de ler. Então por que ler? Porque gosta e pronto. Não tem de justificar nada pra ninguém. O tempo é seu e ela pode desperdiçar como bem entender.
Saiu apressada para fazer compras, voltou para casa e leu atentamente as instruções. Terminado o serviço contemplou sua obra. Tacos, antes tropeçantes e arredios, simetricamente presos e nivelados. Pronto: missões cumpridas. Sentiu-se forte. Para comemorar ovo frito na manteiga com pão francês quente. Bem quente.


Comentários

Ida Vicenzia disse…
Aqui vem um comentário: pensando bem, o que é conto? Diz Mário (o de Andrade) que conto é tudo o que chamamos conto. Muito bem. Eu não acho que a Catarina tenha escrito um conto. Pronto, lá vem polêmica! Ela escreveu uma "anedota", como falam os puristas. Exerceu seu bom-humor e ponto. Nada contra, mas não tem vocação pras páginas de um livro e sim para as de um caderno de Variedades de jornal (como já não existem jornais...) Salve o senso de humor de Catarina! Continuo sua devotada leitora, Beijo
Catarina Cunha disse…
Sou meio lunática. Hoje acordei chamando meu texto de "crônica". Ontem foi "conto", amanhã, quem sabe? chame de "anedota". O que vale é o leitor. Beijos e obrigada.
Haha! Seus contos, crônicas ou anedotas são sempre deliciosamente irônicos e inteligentes. Beleza!
Anônimo disse…
Conto, crônica, historinha, historieta, viagem, alucinação... O que importa? Você se supera a cada publicação! Adorei!
Wilma
Catarina Cunha disse…
Acho que vocês pegaram o espírito da coisa. Sempre grata.
Marcia Tavares disse…
Conto com seus contos sempre. Anedotas de humor inteligente e embora cronicamente ótima, não vou poder dizer que gosto. rs. Por que?
Bateu no meu ponto fraco.
Não acreditar em leitura demão.
Depende de quem, mas, pelo seu texto, vou adicionar algumas informações sobre Berta que, seu estiver errada, peço me dê um feedback:
- As unhas devem ser curtas
- O polegar reto, não deve se curvar muito para trás.
- A mão deve ter a base quadrada e a pele enrrugada, o que independe de idade, esclareço desde já.
- A linha da mente, deve ser enorme e curva para o monte da lua.
- O monte da lua (almofadinha próxima ao punho, na direção do dedo mindinho), deve ser bem cheinha. Quem sabe com uma alternância de cores.
- O mindinho (mercúrio) dedo da comunicação, deve ser bem assadinho ou no mínimo ter a primeira falange bem grande.
Agora chega. Já usei demais minhas unhas curtas.
Catarina Cunha disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Catarina Cunha disse…
Márcia, quando criei Berta nem imaginei que teria mãos. Agradeço por seus préstimos gratuitos de quiróloga experiente. Agora Berta já possui mãos e - quem sabe?, talvez passe a consultar quirólogos compulsivamente toda vez que aparecer uma mordida de mosquito, uma ruga ou um calo novo. Pena que ela esquece tudo depois.
Como autora, respeito e admiro sua profissão. A personagem vai passar um bom tempo para tirar a quirologia da cabeça.
Muito obrigada a todas pelo enriquecimento deste blog.

Unknown disse…
O destino dessa deliciosa crônica, assim como o de Berta, não está escrito nos jornais...
Quando estiver em mais um dos seus deliciosos livros, eu compro!

Anônimo disse…
Deliciosa história. E resolvemos o problema se é conto ou crônica.

Ivo de Souza

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