A PRAÇA É DE NINGUÉM
As praças foram criadas para que
os humanos pudessem interagir de forma centralizada. Fosse para se divertir,
competir, se exibir ou compartilhar a comida. As praças participam da evolução
da humanidade. Nascem, têm seu apogeu, tragédia e abandono junto com suas
civilizações. Algumas adormecem como Pompéia e Machu Picchu. Ao contrário das
civilizações as praças, enquanto espaço aberto,
nunca morrem, apenas adormecem. Aguardam o momento propício ao
renascimento. As praças eternizam-se na
memória de cada frequentador e momentos, como clichês, não morrem. O leitor
neste momento deve lembrar da praça da infância onde brincou de escorrega,
jogou bola de gude, deu o primeiro beijo, conheceu a pessoa amada. Todo mundo
tem uma lembrança de uma praça a preservar. Eu também tenho uma praça.
Moro na bucólica Praça São
Salvador, fincada na zona sul do Rio de Janeiro, Brasil. Sem trânsito intenso,
arborizada, ruas de paralelepípedo, parquinho, chafariz e coreto. A dez minutos
do Centro, do lado do metrô, a um pulo do Aterro do Flamengo e a um túnel da
zona norte, a um beijo de Copacabana. Quando achei este recanto pensei que ele
estava preso numa bolha do tempo, preservado da loucura do século XXI. Até a poucos
anos tratava-se de um esconderijo secretíssimo. Coisa só para entendido cascudo
de carioquice, protegido pela conversa de boca miúda, sem anúncio no jornal,
regalo para poucos iniciados. De manhã bem cedo idosos praticavam
tai-chi-chuam, crianças brincavam, jovens namoravam e trabalhadores descansavam
na hora do almoço. No começo da noite botecos familiares faziam a festa dos
moradores para um chope depois do trabalho. Tinha de tudo na praça: farmácia,
frete de mudança, padaria, lavanderia,
barbearia, videolocadora, papelaria, minimercado, salão de beleza, lanchonete,
açougue, loteria, banca de revista, correio, dentista, clínico geral, ponto de
táxi, chaveiro, ônibus, pedreiro, corpo de bombeiros, bombeiro gasista,
eletricista, banca do jogo do bicho e o
Zé do Queijo, que faz de tudo um pouco, menos queijo; e o Aroldo, o mendigo de estimação da área completava
a “obra prima”. Todos se conheciam pelo nome e a vida funcionava sem maiores
assombros. Fiz questão de ser enfadonhamente descritiva para que o leitor
percebesse o quanto o morador sãosalvadourense tinha motivo suficiente para se
sentir numa ilha autossuficiente. E como todo ilhéus, isolado por excelência,
com muito trabalho, imune à miséria e à riqueza. Seria
necessário mais do que isso para existir com dignidade?
Até 2007 o Rio viveu tempos de
grande violência com o tráfico de drogas e as milícias disputando a cidade à
bala sem que o governo do Estado tomasse ciência. Era uma cidade sitiada,
principalmente nos bairros carentes. Embora a nossa pracinha não sofresse tanta pressão,
também não ficava impune. Depois da meia-noite ficava deserta e escura,
entregue aos bandidos. Cruzar a praça na madrugada era uma aventura para os
fortes. Podendo perder a carteira ou algo mais precioso. Depois o governo mudou,
melhorando a qualidade de vida para inúmeras comunidades, através de segurança
e serviços públicos. Isso refletiu também no asfalto e as ruas ficaram mais
seguras. O carioca é rueiro por natureza. Se depender dele passa dia e noite na
rua. Nossa praça começou a ser mais frequentada pelos moradores.
Por iniciativa de alguns
moradores ligados ao meio cultural criaram a roda de samba “ Bagunça meu Coreto”
e a roda de chorinho “Conserta meu Coreto” e depois a Feirinha de Artesanato no
Domingo. Emocionada e orgulhosa vi surgir diversas trupes de jovens criativos,
circenses, batuqueiros, poetas, escritores, livreiros, militantes políticos
ocupando o espaço vivo, porque a praça é uma simbiose entre o concreto e o
criativo. Romântico isso. Belíssimo. Estava funcionando maravilhosamente bem.
Tínhamos pequenos shows de blues, jazz, MPB, um monte de coisas. Alguns
ambulantes independentes. Tudo intimista. Quem quisesse ouvir que descesse para
a praça. Só acontecia nas sextas e nos sábados à noite até às 22 horas e nos domingo
pela manhã. Funcionava e pronto.
Em pouco tempo a pracinha virou
moda entre descolados. Começou a aparecer gente para fazer shows cada vez com
mais equipamento e de todos os costados. Um dia ocuparam a quarta, depois a
segunda, a terça e quando olhamos para o lado não tinha mais dia e nem horário. Falam agora que a praça “São Salva” é
o lugar onde tudo acontece. Um “formador de opinião” decidiu e pronto. Saiu no jornal.
A qualquer momento para um caminhão e começa um show. Os amplificadores
ganharam poder de trio elétrico. Vinte e duas horas termina o show que
oficialmente teria autorização para estar ali e começa a manifestação
espontânea do povo vindo de todas as partes do Rio de Janeiro e do mundo. Sim,
do mundo. Hotéis já têm convênio para trazer gringo para a praça em van
fretada. Depois das dez da noite, em nenhum outro espaço residencial da cidade,
é permitido perturbar o silêncio. Não na Praça São Salvador, porque “São Salva”
a noite. Depois deste horário é possível ver uma verdadeira procissão de
ambulantes, turistas e boêmios, já devidamente calibrados, migrando de outros
bairros apagados para a praça que nunca dorme, que salva a noite dos que não
podem pagar os preços exorbitantes de ingressos de boates. Traga sua zabumba, seu trompete, pandeiro ou
mesmo seu coro de bêbados para cantar até o dia amanhecer. Não que o sol seja
impeditivo da sua bebedeira e cantoria continuar incessantemente; de maneira
alguma. É que, infelizmente, a Comlurb precisa retirar a tonelada de lixo e de garrafas quebradas e
lavar a urina e vômito da noite anterior, preparando assim o terreno para a
próxima noite.
Quem perde com isso? Os
verdadeiros artistas que procuram respeitar o espaço público, trazendo
propostas novas e não têm condições de competir no mercado monopolizado por
figurinhas marcadas do show bizz e os moradores
a beira de um infarto ou um ataque de nervos que perderam seu espaço,
seu referencial de vida e paz. Ocorre que apenas os artistas, simpatizantes e
os moradores estão discutindo a relação na rede e, claro, se desgastando. Isto
só enfraquece o mesmo exército. E sabe
quem ganha com isso? Quem está cagando para se a praça vive ou morre: O turismo predatório, ambulantes empresas que
desovam à meia-noite cem engradados de
cerveja e políticos em ano eleitoral propondo gradear a praça. Estes são
parasitas que sugarão até a última seiva da praça. E quando não houver mais o
que tirar encontrarão outro recanto para destruir. Enquanto isso, a Prefeitura espera confortavelmente
uma posição mais contundente da sociedade para tomar uma decisão.
Gradear uma praça porque não
sabem usá-la seria como trancar uma biblioteca porque crianças não sabem ler.
Devemos deixar a chave da biblioteca com a diretora esperando a sabedoria
chegar às crianças ou deixar os livros com as crianças para que sejam rasgados,
coloridos e recortados livremente?
Ou organizamos e ensinamos a ler?
Comentários
Tudo de bom,
Luis Henrique Lobo.