O gato, o pinguim e um brinde.
Este conto participou do Desafio de
Terror Recanto das Letras (DTRL28). Não entendo de literatura de terror, sendo a técnica extremamente difícil para mim; mas prestigiei o desafio com um conto-crônica do cotidiano. Isto é, ao meu ver, o verdadeiro terror:
Por mais bêbado que Onofre se esforce, não
tem como não ver e odiar a plaquinha ridícula pendurada na porta: “Lar doce
lar”. Prometera aos próprios colhões um dia matar Zelda com essa placa. Bater
tanto naquela cabeça oca até explodir como um ovo no micro-ondas. Já estava até
vendo o sangue respingando nas cortinas floridas, no tapete sempre branco e no
maldito pinguim, todo dia o encarando quando abre a geladeira. Pensou o quanto
aquele bibelô encaixaria como uma luva na goela do gato de nome escroto: Feliz.
Riu com a ideia da cena, arrancou a placa e socou a porta.
Terror Recanto das Letras (DTRL28). Não entendo de literatura de terror, sendo a técnica extremamente difícil para mim; mas prestigiei o desafio com um conto-crônica do cotidiano. Isto é, ao meu ver, o verdadeiro terror:
O gato, o
pinguim e um brinde.

- Quero mijar, porra! Porta filha da puta cheia de
tranca, como se nesta merda tivesse algo de valor. Acorda bruxa preguiçosa! –
gritou, com a urina escorrendo entre as pernas enquanto a porta se abre.
- Até que enfim, amor. Eu estava tão preocupada.
As crianças não aguentaram e foram dormir.
- Puta que pariu, parece uma assombração no
escuro.
- Comeu
alguma coisa, Onofre? Preparei o jantar. Tá no forno. Quer que esquente?
- Pode dar essa merda pro gato. Tô sem fome, me
deixa em paz. Vai ver a porra da tua novela.
- São duas horas da madrugada, Onofre. Você bebeu
muito, vem cá, vamos tomar um banho e dormir.
- Foda-se se eu bebi, cheirei ou comi uma gostosa
na rua. Você não tem nada a ver com isso.
- Não, claro que não, é que a tua calça...
- Então vai se foder, bruxa velha.
- Quer uma cerveja?
Zelda entrega o copo gelado servido com
espuma e sorri:
- Na
pressão, do jeito que você gosta.
Onofre vira de um gole. Faz uma careta
e joga o copo no gato que dorme em cima da geladeira. Feliz escapa a tempo, o
pinguim não, se esfarelando na parede.
- Que merda de cerveja é essa? Esta bosta tá
choca.
- É uma cerveja especial belga.
- E eu sou homem de tomar cerveja de bichona?
- Achei que você...
- Cala a boca ou te encho de porrada. Já esqueceu
de ontem? Mulher feia tem memória curta, tem que apanhar todo dia.
- Não aguento mais isso. Se você me bater mais uma
vez eu chamo a polícia.
- Agora a gorda virou feminazi? Não tem o que
fazer? É o que dá ficar fofocando na internet o dia todo. Tá chorando por quê?
O que te falta nesta casa? Tem tudo do bom e do melhor. Já sei: arranjou um
namoradinho virtual, né? Pede desculpas, vem pagar um boquetinho aqui no papai, ou corto a internet e a tua língua.
- Faço tudo para te agradar. Não mereço ser
tratada como lixo.
- E você acha que é o quê? Eu sei o que você quer.
- Sai daqui, não quero mais você nesta casa!
- Vem cá, minha vaca.
- Me larga, se não eu grito.
- Vou comer esse rabo gordo e gozar na tua boca
fedida.
- Não, tá me machucando, para!
- Não grita para não acordar as crianças. Ou você
quer as meninas na nossa festinha?
- Ah...
Onofre pendura a
placa no pescoço de Zelda, rasga o vestido e arranca a calcinha. Enfia a cara
da mulher na pia e a penetra com a secura de uma pedra-ume. Depois de três
estocadas, broxa. Segura a mulher pelos cabelos, abre a torneira e tenta
afoga-la. Ela não luta.
- Filha da puta! Agora você vai ficar molhadinha.
Ele acerta um, dois, três socos na cara
de Zelda, que cai no chão trincando os dentes sem reagir. Ele enfia o pau mole
na boca sangrando enquanto movimenta a cabeça da mulher com as duas mão. Sem
conseguir a ereção, pega o rolo de massa e o pilão de tempero e enfia na
mulher. Ela tapa a própria boca para não gritar e se encolhe no chão. Ele chuta
seu corpo até que as pernas dele fiquem bambas. Vomita sobre ela, desliza pelos azulejos da
cozinha e apaga.
Zelda está nua no chão. Com um gemido
retira o rolo de massa de dentro da vagina e o pilão de pedra do ânus. O sangue
quente escorre pelo piso até o rosto de Onofre roncando. Ainda com a placa “Lar
Doce Lar” balançando no pescoço, rasteja de quatro até o marido, limpa
cuidadosamente o vômito do rosto dele e levanta-lhe a calça arriada.
Chora em baixo do chuveiro. Ali fica
até a água passar de rubra para límpida. Enxuga o corpo lentamente com uma
toalha macia e cheirosa. Passa hidratante no corpo, seca os cabelos, perfuma as
orelhas e o decote, veste-se de festa dos olhos aos pés.
Com movimentos delicados aquece o
jantar. Enquanto a água do café ferve, põe a mesa com a melhor toalha e
guardanapos de linho. Cantarola uma canção antiga, de algum baile dançado há
muito tempo. Verifica cuidadosamente se a porcelana e os talheres estão bem
arrumados. Abre o vinho, um roble Malbec de Mendoza, passaram a lua de mel
naquele frio lunar. Beberam, comeram, passearam e se amaram muito. Bons tempos.
Onofre não tinha essa barriga dura de grávida nem a cara vermelha de cachaça.
Suspira servindo as duas taças. Observa o marido com um leve sorriso. Mexe em
seu nariz e nas orelhas. Resolve trocar suas calças urinadas e a camisa
respingada de sangue. Escolhe uma gravata azul-celeste combinando com seu
vestido. Veste-lhe o paletó com esmero. Penteia os ralos cabelos do marido e enxuga
a baba escorrendo da boca aberta. Arrasta o homem desacordado e o senta na
cadeira da mesa de jantar. Ele dorme
profundamente com o rosto deitado sobre a mesa. Ela analisa a cara mole por
alguns segundos e dá-lhe um leve tapa no rosto, depois mais outro um pouco mais
forte. Levanta a cabeça do homem pelas orelhas e solta. O rosto bate na mesa
com um som oco, mas ele não acorda.
No armário da cozinha Zelda pega um
funil de aço inox e encaixa. Despeja a água fervente, que entra pelo ouvido e
escorre pelo rosto do homem. Ele acorda aos gritos com o rosto ardendo, desfigurado
por bolhas e carne viva. Agarra o braço com que a mulher segura a panela, mas ela
não se desvencilha, apenas emborca o bico da chaleira em direção à boca de
Onofre. Ele fecha os olhos com um engasgo e cai, treme envergando o corpo para
trás até formar um arco estático. Zelda
abre os olhos do corpo e o amarra sentado na cadeira.
Eleva a taça e brinda com a outra sobre
a mesa. Apenas o gato ouve um sussurro:
- Gostou da festa, amor? Feliz aniversário.
***
DTRL28: Temas: Tortura e traição
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