Hibisco para todos

No último desafio do Entre Contos, com o tema "Retrô cemitérios", fiquei em 7º lugar com a singela visão de um menino muito engajado em suas teorias sobre vida e morte. Assim como meu filho Ian C Angeli na mais tenra idade, Jonas é capaz de emendar um raciocínio no outro sem perder a ternura jamais. 
Todos os contos possuem comentários que foram feitos sem ninguém saber a autoria, usamos pseudônimos até o resultado; o que dá lastro ao desafio. 
Não deixem de conferir os contos dos outros autores, principalmente o campeão "Mea Culpa" de Daniel Reis e "Belinha" de Anderson Henrique.
Com vocês, 

"Hibisco para todos":

Hibisco para todos

Há anos adquiri o hábito de passear nas alamedas do cemitério depois do almoço, lendo as lápides, imaginando a vida daquelas pessoas e sempre terminando meu passeio no túmulo 1672, quadra 9, lar definitivo de minha esposa, que pediu que eu  plantasse um pé de hibisco amarelo, hoje uma frondosa árvore florida. Sento na sombra e conversamos um pouco, conto como foi meu dia, como estão os nossos, e volto para casa.

Dia desses observei um menino, de uns sete ou oito anos vestindo uniforme escolar colher uma flor de minha árvore, a única do cemitério. Achei um gesto bonito. Ontem a cena se repetiu e notei que a árvore estava quase pelada de flores em plena primavera. Na terceira vez que o vi, intrigado, segui a criança para conhecer a quem ele visitava e presenteava diariamente à custa de meu hibisco. Qual não foi minha surpresa ao percebê-lo conversando animadamente, a cada dia, com um túmulo diferente. Devagar me aproximei, mas antes de emitir qualquer palavra, o menino me fulminou com um sorriso:

-   Olá, senhor da árvore amarela. Tudo bem?
-   Você me conhece?
-   Caixa 1672, quadra 9, Estela é a sua mãe?
-   Não, era a minha esposa. Meu nome é Evandro. E o seu?
-   Jonas. Procuro meu pai. Acho que ele gosta de flores amarelas.
-   Percebi. Mas você visita vários túmulos...
-   É que eu não sei onde ele mora. Minha certidão de nascimento não tem o nome de meu pai. Fiquei sabendo um dia desses quando a professora mandou fazer uma redação sobre o dia dos pais. Minha mãe disse que eu não tinha pai. É claro que não acreditei, onde já se viu filho sem pai? Minha prima acha que sou filho de chocadeira, sei que é mentira dela porque minha mãe não é uma galinha e nem eu sou um ovo. Toda vez que o almoço tá pronto, a vizinha chega bem na hora. Minha vó sempre diz “quem é vivo sempre aparece”, e como meu pai nunca aparece, então ele está morto. Não é?
-   Não sei. Talvez não dessa forma.
-   De quantas formas pode se estar morto? Acho muito chato esse negócio de estar morto, então perguntei para a professora porque as pessoas morrem. Ela respondeu que é hereditário. Deve ser a doença que dá em todo mundo. No meu pai deve ter sido um hereditário muito forte porque não deu tempo de eu conhecer. Acho que ninguém conhece meu pai lá na minha rua, então ele deve ficar muito sozinho, lá no céu, sentado nas nuvens olhando para ver se eu estou me comportando direito. A primeira vez que vim aqui foi com a minha vó para eu conhecer o meu vô. Tinha uma foto na casinha e ele era branco com o cabelo preto. Minha vó é preta com o cabelo branco. Lá em casa todo mundo é preto. Não sei a quem meu avô puxou. Deve ser porque antigamente todo mundo era preto e branco ou branco e preto. Todo mundo era parado, não se mexia como a gente de hoje. Gostei muito daquela casinha. Quando o hereditário me pegar vou querer a minha casinha redonda como o casco do Leonardo, que é a tartaruga ninja que usa a máscara azul. Aí eu vou poder encontrar o meu pai, mas antes eu tenho que encontrar a casinha dele, né?

-   Faz sentido. Estou vendo que você gosta muito de flor, meu rapaz.
-   Eu não gosto de flor porque estou vivo. Depois que vi minha vó colocar flores para o meu vô sei que morto gosta de flor. No céu não deve nascer nada naquelas nuvens.
-   Mas você não precisa colocar flor todos os dias se não as flores se acabam aqui igual nas nuvens.
-   Não tinha pensado nisso, talvez seja melhor só conversar mesmo.
-   Também acho. E com esse aqui você já conversou?
-   Já, mas acho difícil ser o meu pai. Não percebeu que ele nasceu depois de mim?
-   Distração minha, me desculpe. Em que ano mesmo você nasceu, Jonas?
-   2007. E você, Seu Evandro?
-   1807, mas isso é outra história.
-   O senhor está muito bem para a idade.
-


   Bondade sua. Olha esta casinha aqui. A foto é de um homem muito distinto. Vamos perguntar se é o seu pai?




         

Comentários

Fiquei imaginando se a figura do homem era um fantasma ou ele apenas usou uma alguma figura de linguagem para exprimir seu jeito de ser. Costumo as vezes pensar que tenho 200 anos também!

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