Ofício de ossos

Esmeraldina botou no mundo doze criaturas, oito se criaram, quatro Deus levou ainda anjos. E só não gerou mais porque o marido Cícero, coveiro da cidade, morreu de uma síncope. Deitou para fazer a sesta e não acordou mais. Tinha espinhela caída, o que não o impedia, de domingo a domingo, de acordar com as galinhas, tomar duas talagadas de cachaça-de-cabeça e seguir para o cemitério. Cavava buraco até a hora do almoço. Depois tirava uma soneca antes de voltar para acompanhar os enterros e selar as tumbas.
Esmeraldina cuidava da casa, das crias e da roça com os filhos maiores. Cícero não deixou pensão. Só um cachimbo fedido de fumo-de-rolo e uma dívida no botequim do Seu Castroso.
No sertão ser coveiro não apetece a todos os viventes. Tem cabra que tem medo de alma. Cícero dizia que medo de alma era para quem tem rabo-preso com defunto. Por causa disso, Cícero passou trinta anos no ofício sem ser incomodado por viva alma; ou morta. Morto o coveiro, ninguém queria a função funesta. Esmeraldina não era diferente. Nem de cemitério gostava, mais pelo cheiro peculiar do que pelo chororô ou alma penada. Mesmo assim achou um desaforo não ter ninguém para enterrar o pai de seus filhos. O cortejo fúnebre parou diante do lugar onde deveria estar aberta a cova de Cícero, um canto esturricado de barro. A comoção foi grande. Não o bastante para que alguém pegasse na pá. O sol ardia nos lombos de vestes pretas quando Esmeraldina sentiu um pingo de suor molhando os lábios. Mandou sentar o caixão no solo e aguardar sua volta. Atravessou a rua e na birosca do Seu Castroso pediu duas cachaças. Bebeu feito água e limpou a boca com o véu negro. Tirou o cachimbo do bolso e acendeu. Amarrou o vestido de viúva na altura dos joelhos, pegou a pá, fincou na terra com o pé e pensou alto o suficiente para os urubus plantados nas cruzes ouvirem e silenciarem: Eu sabia Ciço, que você não deixaria sua velha sem ofício para sustento.
Comentários
Sensacional como sempre.
Beijos de sua fã eterna.
Amarrou o vestido de viúva na altura dos joelhos, pegou a pá, fincou na terra com o pé e pensou alto o suficiente para os urubus plantados nas cruzes ouvirem e silenciarem: Eu sabia Ciço, que você não deixaria sua velha sem ofício para sustento.
Enfim, é a morte que se faz vida através de outra vida que se fez morte. É o rompimento com uma suposta incapacidade, pois isso já seria uma própria morte em vida.