Um brinde ao medo


 Medo não é um brinde que vem amarrado com um laço de fita no nosso cordão umbilical. Nasce do acaso e vai se criando independente de maiores investimentos. Um acaso inerente à vida e cada um têm o seu. Tem gente que teme a morte e outros em não alcançá-la no tempo certo. Há os que fogem do diabo com o mesmo horror com que fogem da cruz. Há medo de buraco, escuridão, vazio e silêncio convivendo alegremente com o terror da luz da ribalta e das multidões. Tem medo de todo tipo de bicho: gato preto, malhado, gatonet e gatos sedutores; cachorrão, cachorrinho e também das cachorras da noite. Do rato, ouriço, bicho-de-pé, voando ou deitado, barata, formiga, leão da selva e do imposto de renda. Do vírus da gripe, AIDS, ebola, tatu-bola e também de bola nas costas. Há quem se borre todo de urso-panda, beija-flor e banda larga que não conecta. Tem os pânicos hospitalares, urológicos, psicológicos, psicóticos, óticos, robóticos e micóticos. Os mais complexos preferem o medo do além, além-túmulo, além-mar, além da noção: mortos-vivos, fantasmas, espírito ruim, zumbis, a Mula-Sem-Cabeça, o Perna-Cabeluda, Saci-Pererê, vampiro, lobisomem e da operadora de telemarketing.
Os mais céticos temem o semelhante, que tudo pode, pode matar, roubar, torturar, humilhar, estuprar e apaixonar. Conheço quem tema que o telefone toque ou que não toque jamais. Há o terror puro de não levantar ou de derramar o leite antes da fervura. Medo da solidão do silêncio ou sua ausência infinita. Medo da frieza da lagartixa na pele ou de ficar feia como a lagartixa. Medo de carro, moto, bicicleta, velocípede, avião e qualquer veículo, inclusive de comunicação. Medo de rede de pesca, de dormir, rede social e de intrigas. Medo rural de raios e urbano dos raios que nos partam no trabalho ou na encruzilhada, do são e do insano, da doença sã e da saudável insanidade. Medo de andar nas calçadas, da topada, dos bueiros que voam e dos que engolem gente nas tempestades. Medo do vizinho doido, da síndica sádica e da fatura atrasada. Medo de ser traído e horror de ser descoberto em traição. Medo da perda e do ganho, da fé ou de perdê-la entre um medo e outro. Pavor da mentira própria e alheia.
     Eu, em meus melhores dias, temo que todos esses medos nos faltem e nos desamparem nos difíceis momentos de coragem.


Comentários

Sensacional - já havia ouvido e gostado. Amei ler. Catarina sempre se superando. Beijos.
Unknown disse…
deu meda!
Beijo.
SAMMY
Beth/Lilás disse…
Muito bom seu texto, parabéns pelo blog!
Vim pela indicação que a amiga Sylvia Regina fez no Face, e gostei;
um grande abraço, carioca


Anônimo disse…
Catá, curti esse texto na sua leitura "publica", e agora curti ainda mais numa leitura demorada. Suas conclusões são sempre iluminadas e iluminantes
Um grande beijo
my

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