Carvão e Costela


Dois vira-latas puro sangue, pêlo curto, focinhos e rabos compridos e orelhas de abano. Iguais, só que uma marrom e o outro negro. Freqüentam a praia do Leme diariamente, a partir das sete horas da manhã. Chegam escoltando o Cara da prancha de surf. Entram os três no mar e, enquanto o Cara pega onda, Carvão e Costela fazem a festa. Pegam caixote, criam buracos, correm atrás de marola e pombo, embolam na areia, zapeiam prá lá e prá cá fazendo o que cachorro sabe fazer melhor: ser feliz.

Nesta manhã de verão, Costela parece indisposta para eventos atléticos e prefere ficar deitada na areia acompanhando os movimentos das ondas, do Cara e do Carvão. Após alguns minutos de contemplação, a cadela levanta, acocora-se e solta o que lhe incomoda. Não costuma fazer isso na praia, sabe que não pode, mas foi, visivelmente, uma emergência quase liquida. O Cara nas ondas e Carvão nos buracos nem percebem a aflição de Costela cheirando aquilo sem saber o que fazer.

O Senhorzinho, figura local que corre diariamente na praia, assiste tudo e vai lá conferir. Zeloso da praia, enterra a prova e encara a criminosa que, agora aliviada, aguarda instruções com os olhos fixos e a língua pendurada. Senhorzinho quebra o dia aplicando o castigo com um único chute no meio do focinho de Costela. A cachorra geme alto ao ser arremessada dois metros adiante. Golfa vermelho e deita lentamente.

Carvão sente tudo e parte em disparada em direção a Senhorzinho que tenta outro golpe. Erra. Carvão crava os dentes no pé assassino e balança a cabeça até que em sua boca deite um pedaço de carne. O Cara, em cima da onda, vê a cena e mergulha, nadando desesperado, em direção à beira. É tarde. O Senhorzinho esguicha do pé um chuveiro tingindo a areia branca. Deitada ao seu lado, tão camuflada de areia e sangue quanto ele, está Costela, imóvel, tossindo. Carvão adota posição de sentido entre uma e outra vítima. Seus olhos negros acompanham os gemidos do velho que não ousa mexer um dedo.
O Cara vem em minha direção, pergunta se tem celular. Tem. Liga para o Corpo de Bombeiros e pede uma ambulância para o velho. Agradece. Corre até as vítimas, joga com os pés areia na cara de Senhorzinho que berra. Pega Costela nos braços, beija suas orelhas e leva-a ao mar para um banho rápido. Carvão acompanha os trabalhos apreensivo. Ciente da pena de morte transitada em julgado imputada a Carvão, o Cara sai do mar correndo com sua amiga no colo em direção à rua com Carvão em seu encalço.

O velho foi recolhido alguns minutos depois pela ambulância dos bombeiros.

A prancha ficou comigo. Nos dias seguintes voltei à praia na esperança de rever o trio e devolver a prancha. Perguntei aos barraqueiros pelo Senhorzinho. Também sumira, depois que perdera o pé. Nunca mais o Leme os viu.

Às vezes, a felicidade se esvai numa única cagada.

Comentários

Anônimo disse…
Olá Catarina,

Adoramos o visual do seu novo blog. Além do excelente conteúdo, ainda tem belos desenhos feito por você.

Parabéns!!

Bjs. Marília e Paulo
Anônimo disse…
oi Catarina! mais uma de que gostei. E me fez lembrar o quanto *odeio* gente que maltrata animais! Tenho *literalmente* vontade de matar quem age assim. :-) Abs Roberta.

Roberta | Email | 12-03-2008 11:55:34



Catarina: taí o que é um conto. Está escondida uma possível crônica, é uma denuncia legal-ecológica da agressão real aos animais, aparenta um início fantático de um romance, sugere um excelente curta-metragem, e é apenas uma criação literária da realidade que vivenciamos no Rio Maravilha, derivada da diversidade cultural, não reconhecida, e matreira pela estupidez humana. Obrigado, Filha! Teu Ivanio.

ivanio | Email | Homepage | 30-12-2007 20:57:11



Oi, colega. Gostei. catiguria! Beijinho Giovanna

Giovanna | Email | Homepage | 25-12-2007 09:35:20

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