A urna e o gelo



Acordou cedo, tomou banho e fez a barba. Procurou o título, mas lembrou ser a identidade desbeiçada o suficiente. Vestiu a camisa vermelha, achando-a por si só explicativa, e saiu fingindo indiferença de quem vai cumprir velha obrigação.
Não tinha fila e os mesários estavam ali só para ele. Diante da urna, um frio covarde na espinha fez com que demorasse seculares segundos para tirar a cola do bolso. Digitou o número e teclou confirma. Tiririririm!! Acabou. Soltou um pumzinho aliviado e respirou orgulhoso. Tá feito.
Sentia o corpo leve, mas sabia que teria de dar satisfações. Foi pensando no caminho pro trabalho: poderia mentir ou alegar que revelar voto é sacrilégio, ou melhor, dizer que esqueceu. Não vai colar. Começou a ficar nervoso só de pensar.
Chegando na birosca da Dona Otília, viu a patroa com a cara azeda de costume. Dizem que sofre dos bofes. Ninguém para atender. Colocou o jaleco amarelo e antes de conseguir chegar no balcão, a peçonhenta atacou:
- Votou em quem?
Fingiu que não era com ele e começou a socar o gelo com o porrete na chopeira.
- Menino, você está surdo?
- Não senhora. Já votei sim senhora.
- Em quem?
- No homem, de novo.
- Mas é um idiota mesmo. Não falei pra você votar no outro?
- Falou sim senhora.
- Então o que foi? Deu bobeira na urna?
- Não senhora. Eu até levei o número que a senhora me deu, mas na hora, na frente daquela máquina, me deu um troço nas vistas...
- É um banana mesmo. O que que eu faço com você?
- Sei não senhora.
- Você sabe como estão os juros? Sabe quanto eu pago de imposto? Tem noção do mensalão, sanguessuga, dólar na cueca e um milhão e setecentos mil tudo misturado?
- Não sei de nadinha não senhora.
- É por isso que essa merda de país não sai da merda, por culpa de milhões de merdas como você!
- Sim senhora.
- Vai! Vai! Cala a boca e soca esse gelo logo!
Voltou a socar o gelo olhando pro outro lado da rua. Viu as crianças brincando na praça e os velhotes pegando sol. Olhou para Dona Otília e para o porrete. Do porrete para Dona Otília e vice-versa de novo. Apertou os olhos mirando a nuca sebenta da Dona Otília. Levantou o porrete e deu tanta surra, mas tanta surra no gelo que só parou quando os braços suados amoleceram. E o gelo virou neve de geladeira.
Encarou Dona Otília que estava com os olhinhos répteis esbugalhados, a boca mole, uma mão crispada na máquina registradora e outra no coração. Soltou o porrete, tirou o jaleco e foi embora sem olhar pra trás.
Na manhã seguinte acordou cedinho como sempre, tomou banho, fez a barba e ligou a televisão para ver o homem de novo presidente. Meu presidente. Vestiu a camisa social, cinto e sapato engraxado.
Dia bom pra procurar emprego. Birosca é o que não falta neste país de Deus.

Comentários

Dá-lhe Catarina,
Sua perspicaz observação da vida é admirável.
Sua fã de sempre.
Sylvia
Anônimo disse…
Graças ao talento da autora, a descrição é tal, que parece que estou ali a viver o episódio na "birosca" da D. Otília, assistindo como figurante. Será que ela também assitiu? Ou é pura realidade ficcionada? ...

Valente | Email | 31-01-2008 12:06:42



Este foi o conto em que todos os comentários foram exatamente o que eu esperava: o comentário surpresa, a identificação inesperada, Grata, muito grata...

catarina | Email | 01-02-2007 22:26:35



Cata, num liga pros 'comments' que faltaram, pois tá bom mesmo, embora alguém pode confundir com crônica ou ensaio de escola de samba. Valeu, Bonza!

YvanioKunha | Email | Homepage | 04-01-2007 20:49:47



Já tive que encarar também muitas Otílias me pedindo satisfação... Quanto patrulhamento! O duro é quando a velha é da família (por conta disso, quase estrago o almoço do domingo de primeiro turno na casa do meu pai)... Catarina, parabéns pelo conto e pela velocidade com que está conseguindo passar tudo pro blog. Assim vai dar vontade de driblar a segurança lá do trabalho e entrar todo dia. Beijos, Dani.

Daniele | Email | 10-11-2006 16:08:26



Qualquer coincidência é mera semelhança...afinal, os personagens são tipos muito comuns nessas bandas.

Catarina | Email | 10-11-2006 15:30:08



Catarina, Acho que conheço este cara, mas não é o Elton e sim o Geraldo, ou é o João? Bem, quem quer que seja, o é. Também viajei neste, dá pra matar a saudade um pouco, a gente fecha os olhos e vê a cena bem nítida na nossa mente. Beleza.

sammy | Email | 10-11-2006 14:47:01



Catarina, Lendo o conto (é um conto mesmo? Ou é uma crônica?Como você sabe não sei a diferença!! Santa ignorância...) Bem mas voltando, tive a impressão de estar diante de um "diálogo" entre a D. Eugênia / Otília e o pobrezinho e humilde do Elton, personagens tão conhecidos e vividos da "birosca" Casa Brasil. Fiquei contente por você tê-lo escrito hoje! Legal!

marilia | Email | 10-11-2006 12:23:27
Anônimo disse…
Graças ao talento da autora, a descrição é tal, que parece que estou ali a viver o episódio na "birosca" da D. Otília, assistindo como figurante. Será que ela também assitiu? Ou é pura realidade ficcionada? ...

Valente | Email | 31-01-2008 12:06:42



Este foi o conto em que todos os comentários foram exatamente o que eu esperava: o comentário surpresa, a identificação inesperada, Grata, muito grata...

catarina | Email | 01-02-2007 22:26:35



Cata, num liga pros 'comments' que faltaram, pois tá bom mesmo, embora alguém pode confundir com crônica ou ensaio de escola de samba. Valeu, Bonza!

YvanioKunha | Email | Homepage | 04-01-2007 20:49:47



Já tive que encarar também muitas Otílias me pedindo satisfação... Quanto patrulhamento! O duro é quando a velha é da família (por conta disso, quase estrago o almoço do domingo de primeiro turno na casa do meu pai)... Catarina, parabéns pelo conto e pela velocidade com que está conseguindo passar tudo pro blog. Assim vai dar vontade de driblar a segurança lá do trabalho e entrar todo dia. Beijos, Dani.

Daniele | Email | 10-11-2006 16:08:26



Qualquer coincidência é mera semelhança...afinal, os personagens são tipos muito comuns nessas bandas.

Catarina | Email | 10-11-2006 15:30:08



Catarina, Acho que conheço este cara, mas não é o Elton e sim o Geraldo, ou é o João? Bem, quem quer que seja, o é. Também viajei neste, dá pra matar a saudade um pouco, a gente fecha os olhos e vê a cena bem nítida na nossa mente. Beleza.

sammy | Email | 10-11-2006 14:47:01



Catarina, Lendo o conto (é um conto mesmo? Ou é uma crônica?Como você sabe não sei a diferença!! Santa ignorância...) Bem mas voltando, tive a impressão de estar diante de um "diálogo" entre a D. Eugênia / Otília e o pobrezinho e humilde do Elton, personagens tão conhecidos e vividos da "birosca" Casa Brasil. Fiquei contente por você tê-lo escrito hoje! Legal!

marilia | Email | 10-11-2006 12:23:27

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