Analfabeto


Quando o dia nasceu, já tinha terminado de ler o livro: foram trezentas páginas sorvidas sofregamente. Fechou os olhos para digerir tudo aquilo. Depois de quinze minutos ruminantes, teve uma revelação: não sabia mais ler, muito menos entender qualquer coisa escrita. Tinha sido abduzido pelos extraterrestres da ignorância. Desespero puro. Procurou no arquivo morto o abecedário, sem sucesso. Não havia mensurado o perigo subjetivo daquele romance. Nunca mais seria o mesmo. Correu até a sala e pegou o jornal do dia anterior tentando ler as manchetes. Nada, estava completamente analfabeto. Esperançoso, pegou papel e caneta para escrever seu próprio nome...Não sabia! O nome sabia, não sabia quais sinais usar para formar seu nome!
A partir daquela manhã, seria escravo da TV para saber dos acontecimentos do mundo e, para formular uma opinião, ficaria vagando entre os amigos, mendigando impressões sobre o planeta, o aquecimento global e tal.
Com os nervos germinando dos poros, agarrou-se ao primeiro caderno do jornal e chorou copiosamente. A tinta tingiu seu rosto como rímel borrado, revelando todos seus pecados impressos. Sentiu um aperto na boca do estômago e mordeu a beirada do periódico, mastigando compulsivamente as notícias.
Tinha que aprender a viver com aquele troço. Montou uma estratégia de guerra para que ninguém desconfiasse de... Seu novo perfil, digamos assim. O que faria com todas as histórias e a multidão de personagens pipocando na cabeça? Compraria um MP4, adotaria o estilo Juruna moderno; a partir de hoje seria um escritor presente, multimídia, interativo. Não escreveria mais seus textos, estaria livre das arapucas gramaticais. Faria programas de rádio e de TV.
No decorrer do dia, percebeu que não mais se importava com o assustador conteúdo das bulas. Não teria mais de preencher cheques, os cartões foram inventados para isso mesmo. Com coragem descomunal, cancelou emails, orkut, assinatura de jornais e de revistas. Nunca mais teria de fazer anotações na agenda. Agenda? Queimou numa pira improvisada na pia do banheiro. Incinerou todos os compromissos e as torturantes metas. Gargalhou loucamente diante das chamas. As letras flutuavam aniquiladas no ar.
Agora? Agora estava indo correr na praia, ofertar-se ao Sol, fazer castelos de areia com as crianças, jogar cocos nas ondas para os cachorros pescarem e nadar com os peixes. Inscreveu-se em cursos práticos de jardinagem, pintura e origami. Agora conhecia realmente as pessoas, escrevia na mente a voz e o sorriso de cada um. Cultivava jasmim e alimentava o canteiro de ervas. Batia papo com gatos, passarinhos e cachorros. Aprendia rapidamente a interagir com as gentes e os dias cresciam juntos com ele. À noite, dormia o sono exausto dos justos. Era um homem livre, com todo o futuro pela frente. Nunca imaginara ser possível ser tão feliz.
Acordou sobressaltado. Sentiu os olhos vazios e custou a acreditar. Levantou, foi até a porta, pegou o jornal e leu-o com o mesmo tédio de ontem.

Comentários

Anônimo disse…
Chocou. É por isto que eu corro. Catarina, vai correr, larga este jornal.

Sammy | Email | 09-05-2007 12:10:17
Anônimo disse…
Catarina, Acho que vc já pode mudar de profissão. Beijos, Ceiça

Ceiça | Email | 26-04-2007 13:28:15

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